Por Prof. Rui Machado
A doutrina da predestinação não é uma heresia. É um dogma da nossa fé. Essa afirmação pode causar a surpresa e o espanto de muitos, e poderá mudar até mesmo conceitos sobre Deus, mas ela é absolutamente verdadeira. A fé católica não só admite a predestinação, como ela obriga os fiéis a aceitá-la. São Próspero dizia "Nenhum católico nega a predestinação divina" (Resp. I, ad object. Gall.; P.L., LI, 157).
De acordo com Ludwig Ott, a doutrina da predestinação "está proposta pelo ordinário e geral ensinamento da Igreja como verdade revelada. As definições doutrinárias do Concílio de Trento pressupõem". Conseqüentemente, ela goza do mais alto grau de certeza teológica: é de fide (de fé), obrigatória para todos os católicos. Ninguém pode, conscientemente (de forma pertinaz) negar um dogma da Igreja.
Que o assunto seja espinhoso, isso não negamos. Mas não podemos nos acostumar a ver um dogma da Igreja classificado como heresia, mesmo que quem venha a fazê-lo, por ignorância, aja sem culpa. Não podemos deixar de expor nosso pensamento sobre a predestinação – pensamento válido, autorizado pela Igreja, que é o de S. Tomás –, por mais que ele seja mal-compreendido de muitos.
A predestinação é o eterno desígnio de Deus em relação aos homens, concernente à sua bem-aventurança ou à sua reprovação. Ninguém pode salvar-se se não estiver predestinado à glória, ninguém pode perder-se se não estiver predestinado à morte eterna. Mas é absolutamente necessário que Deus assim predestine os homens? Sim, é absolutamente necessário, pois a predestinação é parte da Providência, e nada pode existir sem o concurso de Deus, sem o influxo da Causa primeira que move todas as coisas. O próprio livre arbítrio é livre enquanto depende, em última instância, da vontade da criatura, mas ainda assim, dependente, como todas as causas livres ou necessárias, da determinação de Deus.
Mas há predestinação para a morte? Isso não seria calvinismo?
Vejamos bem. Esse assunto, da maneira assim exposta, pode gerar certa confusão na mente do leitor. O concílio de Valence (855), um concílio genuinamente católico, assim se expressou:
"Nós confessamos firmemente a predestinação dos eleitos para a vida e a predestinação dos ímpios para a morte, mas com esta diferença: que na eleição dos que devem ser salvos, a misericórdia de Deus precede o mérito, enquanto que na condenação dos que se perderam, o demérito precede o justo julgamento de Deus."
A Igreja afirma que a predestinação dos justos não é idêntica à predestinação dos ímpios. Era nisso que consistia o erro de Calvino. Os justos são predestinados antes de todo o mérito, ao passo que os ímpios não se perdem, senão em decorrência de seus pecados. E Deus tem que lhes decretar a pena: a morte eterna. Logo, a predestinação dos santos é diferente da predestinação dos ímpios.
Mas será que eu não posso aderir a uma maneira mais suave de conceber a predestinação?
Sim, a Igreja permite a explicação derivada de Luís de Molina, conhecida como molinismo. De acordo com o molinismo, Deus conhece os méritos de cada um, perscrutando-lhes o livre arbítrio desde sempre. É a doutrina da ciência média, e tem a ver com que muitos, inconscientemente, chamam pelo nome simples de "presciência". Molina acreditava que Deus assim decidia em favor daqueles que, postos diante da graça, aceitassem escolher o bem.
No entanto, se a explicação de Santo Tomás não satisfaz a muita gente, a explicação de Molina não me satisfaz. Sou muito mais favorável a não conceber oposição alguma entre a vontade de Deus, que determina, e a vontade do homem, embora tudo no fundo seja fruto do decreto divino. Essa postura de Santo Tomás e de seus comentadores, os tomistas, como Domingos Bañez, sempre gozou da autoridade dos grandes doutores, Sto. Agostinho, S. Boaventura, e não entra em conflito com nenhum atributo divino, tal como podemos conhecer pela teologia natural, e a fé nos afirma.
Ao leitor, importa que saiba que a predestinação não é uma heresia. Ela tem seu lugar na teologia católica. E lugar de honra. É sem dúvida, um dos entendimentos mais elevados da doutrina cristã, e, conhecendo bem a doutrina da Providência e da predestinação, penetraremos a fundo no mistério da graça, e saberemos responder cada vez melhor aos hereges e a tantos quanto indaguem a razão da nossa fé.