O que é a Santa Missa?
Ela é a renovação do Sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo, que sendo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, pagou pelos nossos pecados na cruz. Tal Sacrifício se torna presente na Santa Missa no momento em que o pão e vinho tornam-se verdadeiramente o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor, em memória do sacrifício da Cruz. Constitui: Memorial de Nosso Senhor - Banquete Sagrado - Sacrifício Perfeito
Memorial do Senhor:
"Fazei isto em memória de mim" - é a presença viva de Jesus, que vem diariamente a nós na missa. Na missa recordamos sua Morte, Ressurreição e Ascensão aos céus, à glória, que um dia partilhará conosco - se nós quisermos.
Banquete Sagrado;
Os primeiros cristãos seguiam o exemplo de Jesus ao inserirem a celebração da Eucaristia numa ceia. Era um tipo especial de ceia, um "ágape", palavra grega que significa "festa da amizade". A comunidade cristã reunia-se na casa de algum dos seus membros, pois, naturalmente, ainda não havia templos. A comida era repartida entre todos, como manifestação de amor mútuo. No fim da ceia, quem presidia, isto é, o bispo, celebrava a Eucaristia, segundo o exemplo de Cristo.
A "fração do pão" cedo se desligou da ceia chamada "ágape", passando a celebrar-se de manhã, enquanto o ágape se tomava ao anoitecer. Na metade do século II, ficou fixado o costume de comungar em jejum, e duzentos anos depois o costume do ápage tinha cessado por completo. É banquete, porque nela nos alimentamos do próprio Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo
Sacrifício Perfeito:
Com o transcorrer dos séculos, a palavra sacrifício perdeu grande parte do seu significado exato, e passou a indicar antes algo doloroso. Originalmente, no entanto, essa palavra tinha um só significado: aplicava-se à ação pela qual se oferece a Deus um dom. Deriva de duas palavras latinas: sacrum: sagrado, e facere: fazer. Fazia-se sagrada uma coisa subtraindo-a à posse e ao uso humanos, e oferecendo-a à Deus por um ato simbólico de doação. Deus quer ser honrado com dons oferecidos por suas criaturas. Todos os sacrifícios anteriores à Missa tinham um grande defeito: para Deus, os dons oferecidos não tinham, em si, valor nenhum, simplesmente devolviam a Deus as coisas que Ele mesmo havia criado (touros, ovelhas, pão e vinho - Mal 1, 11 e Salmo 109, 4).
Mas no Sacrifício da Missa a humanidade pode oferecer a Deus um dom digno d'Ele: o dom do seu próprio Filho, um dom de valor infinito, digno de Deus infinito. Aqui temos um dom que Deus não pode recusar, um dom precioso aos seus olhos porque é um dom de Deus a Deus.
É o Sacrifício da Missa o mesmo que o da Cruz?
O Sacrifício da Missa é substancialmente o mesmo que o da Cruz, porque o mesmo Jesus Cristo, que se ofereceu sobre a Cruz, é que se oferece pelas mãos dos sacerdotes, seus ministros, sobre nossos altares, mas, quanto ao modo como é oferecido, o sacrifício da Missa difere do sacrifício da Cruz, conservando todavia a relação mais íntima e essencial com ele. Entre o Sacrifício da Missa e o Sacrifício da Cruz há esta diferença e esta relação: Jesus Cristo sobre a cruz se ofereceu derramando o seu sangue e merecendo para nós; ao passo que sobre os altares Ele se sacrifica sem derramamento de sangue, e nos aplica os frutos da sua Paixão e Morte.
Para quem e para que fins se oferece o Santo Sacrifício da Missa?
O Santo Sacrifício da Missa oferece-se só a Deus e para quatro fins:
1º - Para honrá-lo como convém (Sacrifício Latrêutico);
2º - Para dar-lhe graças pelos seus benefícios (Sacrifício Eucarístico);
3º - Para aplacá-lo, para dar-lhe a devida satisfação pelos nossos pecados, para sufragar as almas do purgatório (Sacrifício Propiciatório);
4º - Para alcançar todas as graças que nos são necessárias (Sacrifício Impetratório).
Quem oferece a Deus o Santo Sacrifício da Missa?
O primeiro e principal oferente do Santo Sacrifício da Missa é Jesus Cristo, e o sacerdote é o ministro que em nome de Jesus Cristo oferece este sacrifício ao Pai. Quando Cristo veio ao mundo, antes de oferecer-Se em sacrifício na Sexta-feira Santa, celebrou uma ceia com Seus Apóstolos, na noite anterior. Essa ceia foi uma antecipação mística e real do sacrifício oferecido no dia seguinte. Na Última Ceia, Jesus antecipou Seu sacrifício, instituindo-o como perpétuo através do oferecimento de Seu Corpo e Seu Sangue. O mesmo Corpo morto na Cruz e o mesmo Sangue derramado foram distribuídos aos Seus Apóstolos, numa verdadeira antecipação do sacrifício.
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Como Jesus tornou perpétuo seu sacrifico e como ele constitui um único e não outro Sacrificio, na Santa Missa?
Além de antecipar o sacrifício, vimos, Jesus Cristo tornou-o perpétuo, quando mandou:" “fazei isto em memória de mim" (Lc 22,19) Assim, os Apóstolos e seus sucessores devem obedecer ao mandamento de Jesus e fazer o que Ele ordenou: realizar o sacrifício. Se o sacrifício pôde ser antecipado, pode também, por ter-se tornado perpétuo, ser oferecido continuamente. Não se trata de um novo sacrifício, eis que o de Cristo foi definitivo e suficiente, mas do mesmo novamente tornado presente pelos Apóstolos, seus sucessores e os colaboradores destes.
O sacrifício de Jesus Cristo foi oferecido na Cruz, e é tornado novamente presente em cada Missa celebrada, portanto é o mesmo, único e suficiente sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo, oferecido de uma vez por todas, ao Pai, na Cruz do Calvário, pelo perdão de nossos pecados, tornado real e novamente presente, ainda que de outro modo, incruento, no altar da igreja pelas mãos do sacerdote validamente ordenado. Como a Cruz foi a causa de nosso perdão, merecendo-nos a graça de Deus, assim também é a Missa. Tornado real e novamente presente: a mesma Cruz é tornada presente diante de nós, pois para Deus não há limite de espaço ou tempo.
"A Missa torna presente o sacrifício da cruz; não é mais um, nem o multiplica. O que se repete é a celebração memorial, a 'exposição memorial' (memorialis demonstratio), de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se atualiza incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrifical do mistério eucarístico não pode ser entendida como algo isolado, independente da cruz ou com uma referência apenas indireta ao sacrifício do Calvário.”" (Sua Santidade, o Papa João Paulo II. Encíclica Ecclesia de Eucharistia, 12)
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Qual o Esquema ou Roteiro da Santa Missa?
1 -Rito de entrada
- Procissão de entrada (do celebrante) - Canto de entrada (de pé)
- Celebrante reverência o alta e o beija (de pé)
- Sinal da cruz (de pé)
- Saudação e acolhida (pelo celebrante)(de pé)
- Ato penitencial (de pé): Exame de consciência e "confissão"; Absolvição sacerdotal; Kyrie: Senhor, tende piedade de nós (pode ser cantado)
- Glória (só nas missas festivas - cantado ou recitado (de pé)
- Coleta (oração oficiada pelo celebrante) (de pé)
2- Liturgia da Palavra
- Primeira leitura (feita pelo sacerdote, diácono, ou por um leigo) (sentados)
- Canto de meditação (por todos) (sentados)
- Segunda leitura (feita pelo sacerdote, diácono ou por um leigo) (sentados)
- Canto de aclamação ao Evangelho (pelo padre ou diácono) (de pé)
- Homilia (pela celebrante) (sentados)
- Profissão de fé (credo) (de pé)
- Oração dos fiéis (preces da comunidade) (de pé)
3 - Liturgia Eucarística
a) Ofertório:
- Procissão das ofertas (canto do Ofertório) (sentados)
- Apresentação do pão (padre eleva a hóstia) (sentados)
- Mistura umas gotas de água no vinho (sentados)
- Apresentação do vinho (elevando o cálice) (sentados)
- Purificação dos dedos do celebrante (sentados)
- Orai, irmãos (de pé)
- Oração sobre as ofertas (de pé)
b) Consagração:
- Prefácio (O Senhor esteja convosco...) (de pé)
- Santo, Santo, Santo ... (de pé)
- Invocação do Espírito Santo sobre as ofertas (de pé)
- Narrativa da ceia ("Estando para ser entregue...") (de joelhos)
- Consagração do pão ("Tomai e comei...") (de joelhos)
- Aclamação ("Eis o mistério da Fé") (de joelhos)
- Lembrança da morte e ressurreição do Senhor (de pé ou de joelhos)
- Oração pela Igreja militante (de pé ou de joelhos)
- Oração pela Igreja padecente (de pé ou de joelhos)
- Oração pela Igreja triunfante (de pé ou de joelhos)
- Louvor final ("Por Cristo, com Cristo, em Cristo...")(de pé ou de joelhos)
c) Comunhão:
- Pai-Nosso (com introdução feita pelo celebrante) (de pé)
- Pede a Deus que nos livre do mal (celebrante) (de pé)
- Rito da paz (saudação da paz entre todos) (de pé)
- Fração do pão (celebrante parte a hóstia grande) (de pé)
- Cordeiro de Deus (recitado ou cantando) (de pé)
- Rito da comunhão: "Felizes os convidados... (de pé); Senhor, eu não sou digno... (de pé); Distribuição da comunhão(de joelhos ou em pé e na boca) (sentados depois da comunhão); Purificação do cálice e âmbula (sentados)
- Oração pós-comunhão (oficiada pelo celebrante) (de pé)
4 - Rito Final
- Avisos e exortações do celebrante (sentados)
- Bênção final (de pé)
- Despedida ("Vamos em paz...") (de pé)
O que diz a instrução Redemptionis Sacramentum, sobre como se deve celebrar a Eucaristia?
No Capítulo II sobre a “participação dos fiéis leigos na celebração da Eucaristia”, estabelece que:
-A participação dos fiéis leigos na celebração da Eucaristia, e nos outros ritos da Igreja, não pode ser equivalente a uma mera presença, mais ou menos passiva, mas deve ser valorizada como um verdadeiro exercício da fé e da dignidade batismal. A força da ação litúrgica não está na mudança freqüente dos ritos, mas, verdadeiramente, em aprofundar na palavra de Deus e no mistério que se celebra.Entretanto, não se diz necessariamente que todos devam realizar outras coisas, em sentido material, além dos gestos e posturas corporais, como se cada um tivesse que assumir, necessariamente, uma tarefa litúrgica específica; embora convenha que se distribuam e realizem entre várias pessoas as tarefas ou diversas partes de uma mesma tarefa.
-Alenta a participação de leitores e acólitos que estejam devidamente preparados e sejam recomendáveis por sua vida cristã, fé, costumes e fidelidade ao Magistério da Igreja.
-Recomenda a presença de crianças ou jovens coroinhas que realizem algum serviço junto ao altar, como acólitos, e recebam uma catequese conveniente, adaptada a sua capacidade, sobre esta tarefa. A esta classe de serviço ao altar podem ser admitidas meninas ou mulheres, segundo o parecer do Bispo diocesano e observando as normas estabelecidas.
No Capítulo 3, sobre a “celebração correta da Santa Missa” especifica sobre: A matéria da Santíssima Eucaristia
-O pão a ser consagrado deve ser ázimo, apenas de trigo e feito recentemente. Não podem ser usadas cereais, substâncias diferentes do trigo. É um abuso grave introduzir em sua fabricação frutas, açúcar ou mel. As hóstias devem ser preparadas por pessoas honestas, especialistas na elaboração e que disponham dos instrumentos adequados. As frações do pão eucarístico devem ser repartidas entre os fiéis, mas quando o número deste excede as frações deve-se usar hóstia pequenas. O vinho do Sacrifício deve ser natural, do fruto da videira, puro e sem corromper, sem mistura de sustâncias estanhas. Na celebração deve ser misturado com um pouco de água. Não deve ser admitida, sob nenhum pretexto, outra bebida de qualquer gênero
A Oração Eucarística
-Só podem ser utilizadas as Orações Eucarísticas do Missal Romano ou as aprovadas pela Sé Apostólica.Os sacerdotes não têm o direito de compor orações eucarísticas, mudar o texto aprovado pela Igreja,nem utilizar outros, compostos por pessoas privadas. É um abuso que algumas partes da Oração Eucarística sejam pronunciadas pelo diácono, por um ministro leigo, bem como por um só ou todos os fiéis juntos. A Oração Eucarística deve ser pronunciada em sua totalidade, e somente, pelo sacerdote. O sacerdote não pode partir a hóstia no momento da consagração. Na Oração Eucarística não se pode omitir a menção do Sumo Pontífice e do Bispo diocesano.
As outras partes da Missa
-Os fiéis têm o direito de ter uma música sacra adequada e idônea e que o altar, os paramentos e os panos sagrados, segundo as normas, resplandeçam por sua dignidade, nobreza e limpeza.
-Os textos da Liturgia não podem ser mudados.A liturgia da palavra não pode ser separada da liturgia eucarística, nem celebradas em lugares e tempos diferentes.
-A escolha das leituras bíblicas deve seguir as normas litúrgicas. Não está permitido omitir ou substituir, arbitrariamente, as leituras bíblicas prescritas nem mudar as leituras e o salmo responsorial com outros textos não bíblicos.
-A leitura evangélica fica reservada ao ministro ordenado. Um leigo, ainda que seja religioso, não deve proclamar a leitura evangélica na celebração da Missa.
-A homilia nunca poderá ser feita por um leigo. Tampouco os seminaristas, estudantes de teologia, assistentes pastorais nem qualquer membro de alguma associação de leigos. A homilia deve iluminar desde Cristo os acontecimentos da vida, sem esvaziar o sentido autêntico e genuíno da Palavra de Deus, por exemplo, tratando apenas de política ou de temas profanos, ou usando como fonte idéias que provém de movimentos pseudo-religiosos.
-Não se pode admitir um “Credo” ou Profissão de fé que não encontre nos livros litúrgicos devidamente aprovados.
-As oferendas, além do pão e do vinho, também podem compreender outros dons. Estes últimos devem ser colocados em um lugar conveniente, fora da mesa eucarística.
-A paz deve ser dada antes de distribuir a sagrada Comunhão, lembrando que esta prática não tem um sentido de reconciliação nem de perdão dos pecados.
-Sugere-se que o gesto da paz seja sóbrio e seja dado apenas aos mais próximos. O sacerdote pode dar a paz aos ministros, permanecendo no presbitério. Para não alterar a celebração e do mesmo modo se, por uma boa causa, deseja dar a paz a alguns fiéis. O gesto de paz é estabelecido pela Conferência de Bispos, com o reconhecimento da Sé Apostólica, “segundo a idiossincrasia e os costumes do lugar”.
-A fração do pão eucarístico deve ser feita somente pelo sacerdote celebrante, ajudado, se for o caso, pelo diácono ou por um concelebrante, mas nunca por um leigo.
Esta começa depois de dar a paz, enquanto se diz o “Cordeiro de Deus”.
-É preferível que as instruções ou testemunhos expostos por um leigo sejam feitas fora da celebração da Missa. Seu sentido não deve ser confundido com a homilia, nem suprimi-la.
União de vários ritos com a celebração da missa
-Não se permite a união da celebração eucarística com outros ritos quando o que será acrescentado tem um caráter superficial e sem importância.
-Não é lícito unir o Sacramento da Penitência com a Missa e fazer uma única ação litúrgica. Entretanto, os sacerdotes, independentemente dos que celebram a Missa, sim podem escutar confissões, inclusive nos mesmo lugar onde se celebra a Missa. Isto deve ser feito de maneira adequada.
-A celebração da Missa não pode ser intercalada como acrescentado a uma ceia comum, nem se unir com qualquer tipo de banquete.
-A Missa não deve ser celebrada, salvo por uma grave necessidade, sobre uma mesa de jantar, ou na sala de jantar, ou no lugar que seja utilizado para uma recepção, nem em qualquer sala onde haja alimentos.
-Os participantes da Missa não podem sentar-se à mesa durante a celebração.
-Não está permitido relacionar a celebração da Missa com acontecimentos políticos ou mundanos, ou com outros elementos que não concordem plenamente com o Magistério.
-Não se deve celebrar a Missa pelo simples desejo de ostentação ou celebrá-la segundo o estilo de outras cerimônias, especialmente profanas.
-Não devem ser introduzidos ritos tirados de outras religiões na celebração da Missa.
No capítulo 4, sobre a “Sagrada Comunhão”, são apresentadas disposições como:
-Estando em consciência de estar em pecado grave, não se deve celebrar nem comungar sem antes recorrer à confissão sacramental, a não ser que seja por um motivo grave e não haja oportunidade de confessar-se.
-Deve-se vigiar para que não se aproximem à sagrada Comunhão, por ignorância, os não católicos ou, até mesmo, os não cristãos.
-A primeira Comunhão das crianças deve ser sempre precedida da confissão e absolvição sacramental. A primeira Comunhão sempre deve ser administrada por um sacerdote e nunca fora da celebração da Missa.
-O sacerdote não deve prosseguir a Missa até que tenha terminado a Comunhão dos fiéis.
-Somente onde a necessidade o requer, os ministros extraordinários podem ajudar o sacerdote celebrante.
-Pode-se comungar de joelhos ou de pé, segundo estabeleça a Conferência de Bispos, com a confirmação da Sé Apostólica.
-Os fiéis têm sempre direito a escolher se desejam receber a Comunhão na boca, mas se o que vai comungar quiser receber o Sacramento na mão, a Comunhão deve ser dada.
-Se existe perigo de profanação, o sacerdote não deve distribuir aos fiéis a Comunhão na mão.
-Os fiéis não devem tomar a hóstia consagrada nem o cálice sagrado por si mesmo, muito menos passá-los entre si de mão em mão.
-Os esposos, na Missa matrimonial, não devem administrar-se de modo recíproco a sagrada Comunhão.
-Não deve ser distribuída de maneira de Comunhão, durante a Missa ou antes dela, hóstias não consagradas, outros comestíveis ou não comestíveis.
-Para comungar, o sacerdote celebrante ou os concelebrantes não devem esperar que termine a comunhão do povo.
-Se um sacerdote ou diácono entrega aos concelebrantes a hóstia sagrada ou o cálice, não deve dizer nada, quer dizer, não pronuncia as palavras “o Corpo de Cristo” ou “o Sangue de Cristo”.
-Para administrar aos leigos a Comunhão sob as duas espécies, devem levar em conta, convenientemente, as circunstâncias, sobre as quais devem julgar em primeiro lugar os Bispos diocesanos.
-Deve excluir totalmente a administração da Comunhão sob as duas espécies quando exista perigo, até mesmo pequeno, de profanação.
A comunhão não deve ser administrada com cálice aos leigos onde:
1) seja tão grande a quantidade de vinho para a Eucaristia e exista o perigo de que sobre tanta quantidade de Sangue de Cristo, que deva ser consumida no final da celebração»;
2) o acesso ordenado ao cálice só seja possível com dificuldade;
3) seja necessária tal quantidade de vinho que seja difícil poder conhecer sua qualidade e proveniência;
4) quando não esteja disponível um número suficiente de ministros sagrados nem de ministros extraordinários da sagrada Comunhão que tenham a formação adequada;
5) onde uma parte importante do povo não queira participar do cálice por diversos motivos.
-Não se permite que o comungante molhe por si mesmo a hóstia no cálice, nem recebe na mão a hóstia molhada. A hóstia que a ser molhada deve ser feita de matéria válida e estar consagrada. Está absolutamente proibido o uso de pão não consagrado ou de outra matéria.
No capítulo 5, sobre “outros aspectos que se referem à Eucaristia”, esclarece que:
-A celebração eucarística deve ser feita em lugar sagrado, a não ser que, em algum caso particular, a necessidade exija outra coisa.
-Nunca é lícito a um sacerdote celebrar a Eucaristia em um templo ou lugar sagrado de qualquer religião não cristã.
-Sempre e em qualquer lugar é lícito aos sacerdotes celebrar o santo sacrifício em latim.
-É um abuso suspender de forma arbitrária a celebração da Santa Missa em favor do povo, sob o pretexto de promover o “jejum da Eucaristia”.
-Reprova-se o uso de copos comuns ou de escasso valor, no que se refere à qualidade, ou carentes de todo valor artístico, ou simples recipientes, ou outros copos de cristal, cerâmica, e outros materiais, que podem quebrar facilmente.
-A vestimenta própria do sacerdote celebrante é a casula revestida sobre o alva e a estola. O sacerdote que se reveste com a casula deve colocar a estola.
-Reprova-se o não uso das vestimentas sagradas, ou vestir apenas a estola sobre o cíngulo monástico, ou o hábito comum dos religiosos, ou a vestimenta comum.
No capítulo 6, o documento trata sobre “a reserva da Santíssima Eucaristia e seu culto fora da Missa”.E nos lembra que:
-O Santíssimo Sacramento deve ser reservado em um sacrário, na parte mais nobre, insigne e destacada da igreja, e no lugar mais apropriado para a oração.
-Está proibido reservar o Santíssimo Sacramento em lugares que não estão sob a segura autoridade do Bispo ou onde exista perigo de profanação.
-Ninguém pode levar a Sagrada Eucaristia para casa ou a outro lugar.
-Não se exclui a oração do terço diante da reserva eucarística ou do santíssimo Sacramento exposto.
-O Santíssimo Sacramento nunca deve permanecer exposto sem suficiente vigilância, nem sequer por um período muito curto.
-É um direito dos fiéis visitar freqüentemente o Santíssimo Sacramento.
-É conveniente não perder a tradição de realizar procissões eucarísticas.
É conciliável apresentações artísticas e Santa Missa?
Mesmo que, em algumas ocasiões especiais, tenha presenciado apresentações artísticas durante a Santa Missa, como uma peça de teatro encenada no Natal, isso não está correto. A Missa é um ato real em que Cristo Se oferece por nós em sacrifício ao Pai. É a Cruz tornada presente. Por isso, não há lugar para eventos que não apontem para essa realidade: uma encenação, por exemplo, passaria a idéia de tudo é mero símbolo, quando, na verdade, os símbolos da Missa indicam e refletem algo vivo, o sacrifício de Cristo.
As regras litúrgicas, por essa razão, não permitem que a Santa Missa seja interrompida. Se um coral deseja se apresentar, ou um grupo de atores quer representar o Evangelho, faça-se fora da Missa, antes ou depois dela. E, para que se utilize o recinto da igreja, cuide-se que o presbitério não seja usado como palco, respeitando o santuário, e também seja o pároco ou reitor extremamente zeloso de que não se faça algazarra no recinto sagrado.
Qual a língua oficial para a celebração da Santa Missa?
A língua oficial para a celebração da Santa Missa e de todos os atos litúrgicos, no rito romano, em ambas as formas, tradicional (tridentina) e moderna (renovada), é o latim. O Concílio Vaticano II, ao contrário do que muitos pensam, não aboliu o uso do idioma latino, antes o incentivou. “Salvo o direito particular, seja conservado o uso da Língua Latina nos Ritos latinos.” (Concílio Ecumênico Vaticano II. Constituição Sacrosanctum Concilium, 36, § 1)
Há, isso sim, uma permissão para que a Missa seja oferecida em vernáculo, i.e., nas línguas nacionais dos vários países. Pode-se, além disso, dizer determinadas partes da Missa em latim e outras em vernáculo.Portanto, a regra é que a Santa Missa, em rito romano, deva ser celebrada em latim, permitindo-se que seja oferecida em vernáculo. Para tal, as conferências episcopais devem traduzir os textos litúrgicos do latim ao idioma pátrio e submeter essas versões para aprovação da Santa Sé Romana. Interessante é celebrar ocasionalmente a Missa em latim na Diocese. Falamos da Missa Nova mesmo, do rito romano moderno, reformado por Paulo VI.
Também a Missa chamada Tridentina, o rito romano tradicional, anterior ao Vaticano II, para cuja celebração o Papa João Paulo II deu indulto mediante o Motu Proprio Ecclesia Dei, poderia ser oferecida, se conveniente e houver procura. Mas a Missa Nova em latim já é um grande bem.(Fonte: BRODBECK, Rafael Vitola. Apostolado Veritatis Splendor)
Qual o papel do silêncio na Celebração Eucarística
Quiesce in Domino et exspecta eum (Salmo 37, 7) No ritmo celebrativo, o silêncio é necessário para o recolhimento, para a interiorização e a oração mental (cf. Mane nobiscum Domine, 18). Não é vazio, ausência, mas sim presença, receptividade, reacção perante Deus que, aqui e agora, nos fala e que, aqui e agora, actua para nós. “Permanece em silêncio diante do Senhor”, recorda o Salmo 37 (36), 7. Na verdade, a oração, com os seus diferentes matizes – louvor, súplica, clamor, grito, lamento, acção de graças – forma-se a partir do silêncio.Entre os demais momentos da celebração da Eucaristia, assume particular importância o silêncio depois da escuta da Palavra de Deus (cf. Ordo Lectionum Missae, 28; IGMR, 128, 130 e 136) e, sobretudo, depois da comunhão do Corpo e Sangue do Senhor (cf. IGMR, 164).Tais momentos de silêncio são de certa maneira prolongados, fora da celebração, quando permanecemos recolhidos em adoração, oração e contemplação diante do Santíssimo Sacramento.
O próprio silêncio da tradição monástica, o dos tempos de exercícios espirituais, de dias de retiro, não serão talvez um prolongamento dos momentos de silêncio característicos da celebração eucarística, para que a presença do Senhor se possa enraizar em nós e dar frutos? Há que passar da experiência litúrgica do silêncio (cf. Carta apostólica Spiritus et Sponsa, 13) à espiritualidade do silêncio, à dimensão contemplativa da vida. Se não for ancorada no silêncio, a palavra pode deteriorar-se, transformar-se em barulho, ou mesmo em confusão.
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Posições e disposições diante da Celebração Eucarística
Procidebant ante sedentem in trono et adorabant viventem in saecula saeculorum (Ap 4,10)
A posição em que nos colocamos diante da celebração da Eucaristia – de pé, sentados, de joelhos – leva-nos às disposições do coração. É toda uma série de vibrações que se dá na comunidade orante. Se o estar em pé manifesta a liberdade filial dada pelo Cristo pascal, que nos libertou da escravidão do pecado, o estar sentado exprime a receptividade cordial de Maria que, sentada aos pés de Jesus, escutava a sua palavra; o estar de joelhos ou profundamente inclinado mostra que devemos tornar-nos pequenos diante do Altíssimo, diante do Senhor (cf. Fil 2, 10). A genuflexão diante da Eucaristia, como fazem o sacerdote e os fiéis (cf. IGMR, 43), exprime a fé na presença real do Senhor Jesus no Sacramento do altar (cf. CIC, 1387).
Reflectindo aqui na Terra, nos santos sinais, a liturgia celebrada no santuário do céu, imitamos os anciãos que “se prostravam diante d’Aquele que vive pelos séculos dos séculos” (Ap 4,10). Se na celebração da Eucaristia adoramos o Deus que é connosco e para nós, uma tal experiência do espírito deve prolongar-se e reflectir-se também em tudo o que fazemos, pensamos e operamos. A tentação, sempre insidiosa, de preocupar-se com as coisas deste mundo pode levar-nos a dobrar os joelhos diante dos ídolos, não já diante de Deus apenas. As palavras com que Jesus, no deserto, rejeita as idólatras sugestões do demónio devem encontrar eco no nosso falar, pensar e agir quotidianos: “Adorarás o Senhor, teu Deus, e só a Ele servirás” (Mt 4, 10). Dobrar os joelhos diante da Eucaristia, adorando o Cordeiro que nos permite celebrar a Páscoa com Ele, educa-nos a não nos prostrar diante de ídolos construídos por mãos de homem; e estimula-nos a obedecer, com fidelidade, docilidade e veneração, a Quem reconhecemos como único Senhor da Igreja e do mundo.
Os Santos e a Santa Missa
"Na hora da morte, as Missas, às quais tiveres assistido, serão a tua maior consolação. Um dos fins da Santa Missa é alcançar para ti o perdão dos teus pecados. Em cada Missa, pois, podes diminuir a pena temporal devida aos teus pecados, pena essa que será diminuída na proporção do teu fervor. Será ratificada no céu a bênção, que do sacerdote receberes na Santa Missa. Assistindo-a com devoção, prestas a maior das honras à Santa Humanidade de Jesus Cristo (Santo Agostinho)
"Cada Missa à que assistires, alcançar-te-á no céu maior grau de glória. Serás abençoado em teus negócios pessoais e obterás as graças, que te são necessárias"(São Jerônimo)
"Todas as Missas tem um valor infinito, pois são celebradas pelo próprio Jesus Cristo com uma devoção e amor acima do entendimento dos anjos e dos homens, constituindo o meio mais eficaz, que nos deixou Nosso Senhor Jesus Cristo, para a salvação da humanidade"
(Santa Matilde)
"Nenhuma língua humana pode exprimir os frutos de graças, que atrai o oferecimento do Santo Sacrifício da Missa"(São Lourenço)
"O Martírio não é nada em comparação com a Santa Missa. Pelo martírio, o homem oferece a Deus a sua vida; na Santa Missa, porém, Deus dá o seu Corpo e o seu Sangue em sacrifício para os homens. Se o homem reconhecesse devidamente esse mistério, morreria de amor".(São Tomás de Aquino)
"Vale tanto a celebração da Missa como a morte de Jesus Cristo, pela qual nos redimiu de todos os nossos pecados.(São João Crisóstomo )
"Deixem o sacerdote celebrar a Santa Missa do modo e maneira conveniente , segundo a liturgia determinada pela Igreja. Não queiram usar de novidades, como se tivessem mais luz que o Espírito Santo e a sua Igreja".(São João da Cruz)
"Pasme o homem todo, estremeça a terra inteira, rejubile o céu em altas vozes quando, sobre o altar, estiver nas mãos do sacerdote o Cristo, Filho de Deus vivo! Ó grandeza maravilhosa, ó admirável condescendência! Ó humildade sublime, ó humilde sublimidade! O Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, se humilha a ponto de se esconder, para nosso bem, na modesta aparência do pão" (São Francisco de Assis)
quinta-feira, 31 de março de 2011
segunda-feira, 28 de março de 2011
Predestinação - Um Dogma Católico
Por Prof. Rui Machado
A doutrina da predestinação não é uma heresia. É um dogma da nossa fé. Essa afirmação pode causar a surpresa e o espanto de muitos, e poderá mudar até mesmo conceitos sobre Deus, mas ela é absolutamente verdadeira. A fé católica não só admite a predestinação, como ela obriga os fiéis a aceitá-la. São Próspero dizia "Nenhum católico nega a predestinação divina" (Resp. I, ad object. Gall.; P.L., LI, 157).
De acordo com Ludwig Ott, a doutrina da predestinação "está proposta pelo ordinário e geral ensinamento da Igreja como verdade revelada. As definições doutrinárias do Concílio de Trento pressupõem". Conseqüentemente, ela goza do mais alto grau de certeza teológica: é de fide (de fé), obrigatória para todos os católicos. Ninguém pode, conscientemente (de forma pertinaz) negar um dogma da Igreja.
Que o assunto seja espinhoso, isso não negamos. Mas não podemos nos acostumar a ver um dogma da Igreja classificado como heresia, mesmo que quem venha a fazê-lo, por ignorância, aja sem culpa. Não podemos deixar de expor nosso pensamento sobre a predestinação – pensamento válido, autorizado pela Igreja, que é o de S. Tomás –, por mais que ele seja mal-compreendido de muitos.
A predestinação é o eterno desígnio de Deus em relação aos homens, concernente à sua bem-aventurança ou à sua reprovação. Ninguém pode salvar-se se não estiver predestinado à glória, ninguém pode perder-se se não estiver predestinado à morte eterna. Mas é absolutamente necessário que Deus assim predestine os homens? Sim, é absolutamente necessário, pois a predestinação é parte da Providência, e nada pode existir sem o concurso de Deus, sem o influxo da Causa primeira que move todas as coisas. O próprio livre arbítrio é livre enquanto depende, em última instância, da vontade da criatura, mas ainda assim, dependente, como todas as causas livres ou necessárias, da determinação de Deus.
Mas há predestinação para a morte? Isso não seria calvinismo?
Vejamos bem. Esse assunto, da maneira assim exposta, pode gerar certa confusão na mente do leitor. O concílio de Valence (855), um concílio genuinamente católico, assim se expressou:
"Nós confessamos firmemente a predestinação dos eleitos para a vida e a predestinação dos ímpios para a morte, mas com esta diferença: que na eleição dos que devem ser salvos, a misericórdia de Deus precede o mérito, enquanto que na condenação dos que se perderam, o demérito precede o justo julgamento de Deus."
A Igreja afirma que a predestinação dos justos não é idêntica à predestinação dos ímpios. Era nisso que consistia o erro de Calvino. Os justos são predestinados antes de todo o mérito, ao passo que os ímpios não se perdem, senão em decorrência de seus pecados. E Deus tem que lhes decretar a pena: a morte eterna. Logo, a predestinação dos santos é diferente da predestinação dos ímpios.
Mas será que eu não posso aderir a uma maneira mais suave de conceber a predestinação?
Sim, a Igreja permite a explicação derivada de Luís de Molina, conhecida como molinismo. De acordo com o molinismo, Deus conhece os méritos de cada um, perscrutando-lhes o livre arbítrio desde sempre. É a doutrina da ciência média, e tem a ver com que muitos, inconscientemente, chamam pelo nome simples de "presciência". Molina acreditava que Deus assim decidia em favor daqueles que, postos diante da graça, aceitassem escolher o bem.
No entanto, se a explicação de Santo Tomás não satisfaz a muita gente, a explicação de Molina não me satisfaz. Sou muito mais favorável a não conceber oposição alguma entre a vontade de Deus, que determina, e a vontade do homem, embora tudo no fundo seja fruto do decreto divino. Essa postura de Santo Tomás e de seus comentadores, os tomistas, como Domingos Bañez, sempre gozou da autoridade dos grandes doutores, Sto. Agostinho, S. Boaventura, e não entra em conflito com nenhum atributo divino, tal como podemos conhecer pela teologia natural, e a fé nos afirma.
Ao leitor, importa que saiba que a predestinação não é uma heresia. Ela tem seu lugar na teologia católica. E lugar de honra. É sem dúvida, um dos entendimentos mais elevados da doutrina cristã, e, conhecendo bem a doutrina da Providência e da predestinação, penetraremos a fundo no mistério da graça, e saberemos responder cada vez melhor aos hereges e a tantos quanto indaguem a razão da nossa fé.
A doutrina da predestinação não é uma heresia. É um dogma da nossa fé. Essa afirmação pode causar a surpresa e o espanto de muitos, e poderá mudar até mesmo conceitos sobre Deus, mas ela é absolutamente verdadeira. A fé católica não só admite a predestinação, como ela obriga os fiéis a aceitá-la. São Próspero dizia "Nenhum católico nega a predestinação divina" (Resp. I, ad object. Gall.; P.L., LI, 157).
De acordo com Ludwig Ott, a doutrina da predestinação "está proposta pelo ordinário e geral ensinamento da Igreja como verdade revelada. As definições doutrinárias do Concílio de Trento pressupõem". Conseqüentemente, ela goza do mais alto grau de certeza teológica: é de fide (de fé), obrigatória para todos os católicos. Ninguém pode, conscientemente (de forma pertinaz) negar um dogma da Igreja.
Que o assunto seja espinhoso, isso não negamos. Mas não podemos nos acostumar a ver um dogma da Igreja classificado como heresia, mesmo que quem venha a fazê-lo, por ignorância, aja sem culpa. Não podemos deixar de expor nosso pensamento sobre a predestinação – pensamento válido, autorizado pela Igreja, que é o de S. Tomás –, por mais que ele seja mal-compreendido de muitos.
A predestinação é o eterno desígnio de Deus em relação aos homens, concernente à sua bem-aventurança ou à sua reprovação. Ninguém pode salvar-se se não estiver predestinado à glória, ninguém pode perder-se se não estiver predestinado à morte eterna. Mas é absolutamente necessário que Deus assim predestine os homens? Sim, é absolutamente necessário, pois a predestinação é parte da Providência, e nada pode existir sem o concurso de Deus, sem o influxo da Causa primeira que move todas as coisas. O próprio livre arbítrio é livre enquanto depende, em última instância, da vontade da criatura, mas ainda assim, dependente, como todas as causas livres ou necessárias, da determinação de Deus.
Mas há predestinação para a morte? Isso não seria calvinismo?
Vejamos bem. Esse assunto, da maneira assim exposta, pode gerar certa confusão na mente do leitor. O concílio de Valence (855), um concílio genuinamente católico, assim se expressou:
"Nós confessamos firmemente a predestinação dos eleitos para a vida e a predestinação dos ímpios para a morte, mas com esta diferença: que na eleição dos que devem ser salvos, a misericórdia de Deus precede o mérito, enquanto que na condenação dos que se perderam, o demérito precede o justo julgamento de Deus."
A Igreja afirma que a predestinação dos justos não é idêntica à predestinação dos ímpios. Era nisso que consistia o erro de Calvino. Os justos são predestinados antes de todo o mérito, ao passo que os ímpios não se perdem, senão em decorrência de seus pecados. E Deus tem que lhes decretar a pena: a morte eterna. Logo, a predestinação dos santos é diferente da predestinação dos ímpios.
Mas será que eu não posso aderir a uma maneira mais suave de conceber a predestinação?
Sim, a Igreja permite a explicação derivada de Luís de Molina, conhecida como molinismo. De acordo com o molinismo, Deus conhece os méritos de cada um, perscrutando-lhes o livre arbítrio desde sempre. É a doutrina da ciência média, e tem a ver com que muitos, inconscientemente, chamam pelo nome simples de "presciência". Molina acreditava que Deus assim decidia em favor daqueles que, postos diante da graça, aceitassem escolher o bem.
No entanto, se a explicação de Santo Tomás não satisfaz a muita gente, a explicação de Molina não me satisfaz. Sou muito mais favorável a não conceber oposição alguma entre a vontade de Deus, que determina, e a vontade do homem, embora tudo no fundo seja fruto do decreto divino. Essa postura de Santo Tomás e de seus comentadores, os tomistas, como Domingos Bañez, sempre gozou da autoridade dos grandes doutores, Sto. Agostinho, S. Boaventura, e não entra em conflito com nenhum atributo divino, tal como podemos conhecer pela teologia natural, e a fé nos afirma.
Ao leitor, importa que saiba que a predestinação não é uma heresia. Ela tem seu lugar na teologia católica. E lugar de honra. É sem dúvida, um dos entendimentos mais elevados da doutrina cristã, e, conhecendo bem a doutrina da Providência e da predestinação, penetraremos a fundo no mistério da graça, e saberemos responder cada vez melhor aos hereges e a tantos quanto indaguem a razão da nossa fé.
Mortificação - Caminho de Santidade
A Mortificação contribui, com a penitência, para purificar das faltas passadas; mas o seu fim principal é premunir-nos contra as do presente e do futuro, diminuindo o amor do prazer, fonte dos nossos pecados.
O corpo chagado de Jesus é um autêntico retábulo de dores... Por contraste, vêm à memória tanto comodismo, tanto capricho, tanta negligência, tanta mesquinhez... E essa falsa compaixão com que trato a minha carne. Senhor!, pela Tua Paixão e pela Tua Cruz, dá-me forças para viver a mortificação dos sentidos e arrancar tudo o que me afaste de Ti. (Via Sacra)
Sua natureza, Sua Necessidade e a Sua Prática.
Natureza -> Seus diversos Nomes e sua Definição.
Necessidade -> Para a Salvação e para a Perfeição.
Prática -> Princípios gerais - Mortificação dos sentidos exteriores -Mortificação dos sentidos interiores - Mortificação das paixões e Mortificação das faculdades superiores.
I. Natureza da Mortificação
A - Expressões bíblicas, para designar a mortificação. Encontramos sete expressões principais nos Livros Santos, para designar a mortificação sob os seus diversos aspectos.
1 - A palavra renúncia: «qui non renuntiat omnibus quae possidet non potest meus esse discipulus» apresenta-nos a mortificação como um ato de desprendimento dos bens exteriores, para seguirmos a Cristo. Assim fizeram os Apóstolos: «relictis omnibus, secuti sunt eum»
2 - É também uma abnegação ou renúncia a si mesmo: «Si quis vuli post me venire, abneget semetipsum» E na verdade, o mais terrível dos nossos inimigos é o amor próprio desordenado; eis o motivo por que é forçoso desapegar-nos de nós mesmos.
3 - Mas a mortificação tem um lado positivo: é um ato que fere e atrofia as más tendências da natureza: «Mortifica te ergo membra vestra .. Si autem Spiritu facta carnis mortíficaveritis, vivetis »
4 - Mais ainda é uma crucificação da carne e das suas concupiscências, pela qual cravamos, por assim dizer, as nossas faculdades à lei evangélica aplicando-as à oração, ao trabalho: «Qui sunt Christ, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis»
5 - Esta crucifixão, quando persevera, produz uma espécie de morte e de en terramento, pelo qual parecemos morrer completamente a nós mesmos e sepultar-nos com Jesus Cristo, para vivermos com Ele uma vida nova «Mortui enim estis vos et vita vestra est abscondita cum Cristo in Deo … Consepulti enim sumus cum illo per baptismum in mortem» .
6 - Para exprimir esta morte espiritual. São Paulo serve-se doutra expressão: como, depois do batismo, há em nós dois homens, o homem velho que fica, ou a tríplice concupiscência, e o homem novo ou o homem regenerado, declara o Apóstolo que é nosso dever «despojar-nos do homem velho, para nos revestirmos do novo: expoliantes vos veterem hominem ... et induentes novum» .
7 - E, como isto se não faz sem combater, declara ainda que a vida é combate «bonum certamen celta vi», que os cristãos são lutadores ou atletas que castigam o seu corpo e reduzem a servidão.
De todas estras expressões e outras análogas, resulta que a mortificação compreende um duplo elemento: um negativo, o desprendimento, a renúncia, o despojamento; e outro positivo, a luta contra as más tendências, o esforço para as mortificar ou atrofiar, a crucificação, a morte da carne, do homem velho e das concupiscências, a fim de vivermos da vida de Cristo.
B- Expressões modernas. Hoje vai-se preferindo o uso de expressões mitigadas, que indicam o fimque se pretende atingir, antes que o esforço que para isso se tem de empregar. Diz-se que é mister reformar-se a si mesmo, governar-se a si mesmo, fazer a educação da vontade, orientar a sua alma para Deus. Estas expressões são exatas, contanto que se saiba mostrar que ninguém pode reformar-se e governar-se a si mesmo, sem combater e mortificar as más tendências que em nós existem; que não se faz a educação da vontade, senão mortificando, disciplinando as faculdades inferiores, e que não há possibilidade de alguém se orientar para Deus se não desapegando-se das criaturas e despojando-se dos próprios vícios. Por outros termos, é necessário saber, como faz a Sagrada Escritura, reunir os dois aspectos da mortificação, mostrar o fim, para consolar, mas não dissimular o esforço necessário para o atingir.
C - Definição.Pode-se, pois, definir a mortificação: a luta contra as más inclinações, para as submeter à vontade, e esta a Deus. É menos virtude que um complexo de virtudes, o primeiro grau de todas as virtudes, que consiste em vencer os obstáculos, no intuito de restabelecer o equilíbrio das faculdades, a sua ordem hierárquica. Assim se vê mehor que a mortificação não é um fim, senão um meio; o homem não se mortifica senão para viver uma vida superior, não se despoja dos bens exteriores senão para melhor conseguir os bens espirituais, não se renuncia a si mesmo senão para possuir a Deus, não luta senão para gozar .,. paz, não morre a si mesmo senão para viver da vida de Cristo, da vida de Deus. A união com Deus, é, pois, o fim da motificação. Assim, melhor se compreende a sua necessidade.
II -Necessidade da Mortificação. Esta necessidade pode-se estudar sob duplo aspecto: a Salvação e a Perfeição.
A -Necessidade da mortificação para a Salvação.Há mortificações necessárias para a salvação, neste sentido que, se não se fazem, há perigo de cair no pecado mortal:
1 - Nosso Senhor Jesus Cristo fala disto clarissimamente, a propósito das faltas contra a castidade: «Todo aquele que olhar para uma mulher com concupiscência, ad concupiscendam eam, já cometeu adulério com ela em seu coração». Há, pois, olhares gravemente pecaminosos, os que são inspirados por maus desejos; e a mortificação de tais olhares impõe-se sob pena de pecado mortal. É afinal, o que Nosso Senhor acrescenta com estas enérgicas palavras: «Se o teu olho direito te escandaliza, arranca-o, e lança-o para longe de ti; porque melhor te é que pereça um só dos teus membros do que ser todo o teu corpo lançado na geena». Não se trata aqui de vazar os próprios olhos, senão de arrancar a vista desses objetos que são cauda de escândalo.
_ São Paulo dá-nos a razão destas graves prescrições: «Se viverdes segundo a carne, morrereis; mas se, pelo Espírito, fizerdes morrer as obras da carne, vivereis: si enim secundum carnem vixeritis, moriemini, si autem Spiritu facta carnis mortificaveritis, vive tis»Como sabemos a tríplice concupiscência que permanece em nós, excitada pelo mundo e pelo demônio, leva-nos muitas vezes ao mal e põe-nos a salvação em perigo, se não temos cuidado de a mortificar. Donde resulta a necessidade absoluta de combater incessantemente as tendências pervesas que em nós existem, de evitar as ocasiões próximas de pecado, isto é, esses objetos ou pessoas que, dada a nossa experiência passada, constituem para nós um perigo sério e provável de pecado, e de renunciar por isso mesmo a muitos prazeres a que a natureza nos arrasta. Há, pois, mortificações necessárias, sem as quais viríamos a cair no pecado mortal.
2 - Outras há que a Igreja prescreve, para determinar concretamente a obrigação geral, que temos de nos mortificar, tantas vezes inculcada no Evangelho: tal é a abstinência das sextas-feiras, o jejum da Quaresma, das Têmporas e Vigílias.. Estas leis obrigam sob pena de pecado grave aos que não estão legitimamente escusados ou dispensados. E neste ponto queremos fazer uma observação que não deixa de ter importância: há pessoas que, por boas razões, estão dispensadas destas leis; mas nem por isso se julguem dispensadas da lei geral da mortificação, que, por conseguinte, devem praticar por outra forma qualquer. Sem o que, não tardariam a sentir as revoltas da carne.
3 -Além destas mortificações prescritas pela lei divina e eclesiástica há outras que, com o parecer do próprio diretor, cada qual deve tomar em certas circunstâncias particulares, quando as tentações se tornem mais importunas. Escolher-se-ão entre as que depois indicaremos.
B - Necessidade da Mortificação para a Perfeição.Esta necessidade promana da natureza da perfeição, que, consiste no amor de Deus até o sacrifício e imolação de nós mesmos, de tal sorte que, segundo a Imitação, a medida que nosso progresso espiritual depende da violência que a nós mesmos nos fazemos: tantum proficies quantum tibi ipsi vim intuleris . Bastará, recordar sumariamente alguns motivos que poderão influir sobre a nossa vontade, para a ajudar a cumprir este dever. Esses motivos tiram-se da parte de Deus, de Jesus Cristo, e da nossa santificação pessoal .
1. Da parte de Deus
A - O fim da mortificação, como dissemos, é unir-nos com Deus. Ora, é impossível conseguir essa união, sem nos desprendermos do amor desordenado das criaturas. Como diz com razão São João da Cruz, «a alma apegada à criatura torna-se semelhante a ela; quanto mais cresce a afeição, tanto mais se afirma entre a identidade, já que o amor estabelece uma relação de igualdade entre o que ama e o que é amado ... Portanto, quem ama uma criatura, abate-se ao seu nível, e até mais abaixo, porque o amor não se contenta de nivelar, senão que estabelece uma certa escravidão. É por este motivo que uma alma, escrava dum objeto fora de Deus, se torna incapaz de pura união e transformação em Deus, porque a baixeza da criatura é mais distante da soberania do Criador que as trevas da luz».Ora a alma, que se não mortifica, não tarda em apegar-se desordenadamente às criaturas. Após a queda original, sente-se atraída para elas, cativada pelos seus encantos, e, em lugar de se servir delas como de degraus para subir ao Criador, compraz-se nelas, considerando-as como um fim. Para quebrar este encanto, é absolutamente necessário desapegar-se de tudo o que não é Deus, ou ao menos, de tudo que não é encarado como meio de subir para Deus.
Eis o motivo por que M. Olier, comparando a condição dos cristãos com a de Adão inocente, diz que há uma grande diferença entre ambos; « Adão buscava a Deus, servia-o e adorava-o nas sua criaturas; os cristãos, pelo contrário, são obrigados a buscar a Deus pela fé, a servi-lo, a adorá-lo retirado em si mesmo e na sua santidade, separado de toda a criatura». É nisto que consiste a graça do Batismo
B - No dia do nosso Batismo firmou-se entre Deus e nós um verdadeiro contrato:
a) Do seu lado, purificou-nos Deus da mácula original e adotou-nos por filhos, comunicou-nos uma participação da Sua vida e empenhou-se a dar-nos todas as graças necessárias para a conservar e acrescentar. E bem sabemos nós com que liberalidade cumpriu Deus as suas promessas.
b) Do nosso lado, comprometemo-nos a viver como verdadeiros filhos de Deus, a aproximar-nos da perfeição do nosso Pai Celeste, cultivando essa vida sobrenatural.Ora, tudo isso é impossível sem prática da mortificação. Porquanto, duma parte, o Espírito Santo, que nos foi dado no Batismo, “os leva a buscar o desprezo, a pobreza, os sofrimentos, e por outra, a nossa carne deseja a honra, o prazer, as riquezas» Há, pois, em nós um conflito, uma luta incessante; nem podemos ser fiéis a Deus, sem renunciarmos amor desordenado da honra, do prazer e das riquezas. É por isso que o sacerdote, ao administrar-nos o Batismo, traça duas cruzes sobre nós, uma sobre o coração, para imprimir em nós o amor da cruz, outra sobre os ombros, para nos dar a força de a levar. Faltaríamos, pois, às promessas do nosso batismo, se não carregássemos com a nossa cruz, combatendo o desejo da honra com a humildade, o amor do prazer com a mortificação, a sede das riquezas com a pobreza.
2 – Da parte de Jesus Cristo
A) Somos-lhe incorporados pelo Batismo, e, como tais, devemos receber D’ele o movimento e as inspirações, e, por conseguinte, conformar-nos com Ele. Ora, como diz a Imitação, a sua vida inteira não foi senão longo martírio: «Tota vita Christi crux fuit et martyrium». A nossa, por conseguinte, não pode ser vida de prazer e honras, senão vida mortificada. É afinal o que nos diz claramente o nosso divino Chefe: «Si quis vult post me venire, abneget semetipsum, et tollat crucem suam quotidie et sequatur me”. Pois, se há alguém que deva seguir a Jesus, é seguramente aquele que tende à perfeição. Ora, como seguir a Jesus que, desde a entrada no mundo abraçou a cruz, que toda a sua vida suspirou pelo sofrimento e humilhação, que desposou a pobreza no presépio e a teve por companheira até o Calvário, se amamos o prazer, as honras, as riquezas, se não levamos a nossa cruz de cada dia, a que o próprio Deus nos escolhe e envia? É uma vergonha, exclama São Bernardo, que debaixo duma cabeça coroada de espinhos, sejamos membros delicados, com temor dos menores sofrimentos: «pudeat sub spinato capite membrum fieri delicatum». Para sermos, pois, conformes a Jesus Cristo e nos aproximarmos da sua perfeição, é necessário levar a nossa cruz com Ele.
B) Se aspiramos ao apostolado, aí temos novo motivo para crucificar a carne. Foi pela cruz que Jesus Cristo salvou o mundo; será, pois, pela cruz que havemos de colaborar com Ele na salvação de nossos irmãos, e o nosso zelo será tanto mais fecundo quanto maior for a parte que tivermos nos sofrimentos do Salvador. Era este, seguramente, o motivo que animava São Paulo, quando completava em sua carne a paixão do divino Mestre, a fim de obter graças para a Igreja. É isto que sustentou no passado e sustenta ainda no presente tantas almas que se oferecem com vítimas, para ser Deus glorificado e as almas salvas. É áspero, sem dúvida, o sofrimento, mas, ao contemplarmos Jesus caminhando diante de nós com a cruz aos ombros, para nos salvar a nós e aos nossos irmãos, ao vermos a Sua agonia, a Sua condenação injustíssima, a flagelação, a coroação de espinhos, a crucifixão, ao ouvirmos as mofas, os insultos, as calúnias, que Ele aceita em silêncio, como ousaremos queixar-nos? Ainda nao chegamos a derramar o sangue: «nondum usque ad guinem restitistis». E se estimamos no seu justo valor a nossa alma e a de nossos irmãos, não valerá a pena suportar alguns sofrimentos passageiros por uma glória que jamais findará, e para cooperar com Cristo Senhor Nosso na salvação dessas almas, pelas quais Ele derramou até à última gota, o Seu sangue? Estes motivos, por mais elevados que sejam, são compreendidos por algumas almas generosas, logo desde o começo da sua conversão; propor-lhos, é adiantar a obra da sua purificação e santificação.
3 - Da parte da nossa Santificação
A) Necessitamos de assegurar a perseverança, ora, a mortificação é, sem dúvida alguma, um dos melhores meios de preservação do pecado. O que nos faz sucumbir à tentação é o amor do prazer ou o horror da pena, da luta, horror difficultatis, labor certaminis. Ora, a mortificação combate esta dupla tendência, que em realidade é uma só.
Desquitando-nos de alguns prazeres legítimos, a mortificação arma-nos a vontade contra os prazeres ilícitos, tornando-nos fácil a vitória sobre a sensualidade e o amor próprio, «agendo contra suam propriam sensualitatem et contra suum amorem carnalem et mundanum», com diz com razão Santo Inácio. Se, pelo contrário, capitulamos diante do prazer, concedendo-nos todas as alegrias permitidas, como saberemos resistir no momento em que a sensualidade, ávida de novos gozos, perigosos ou ilícitos se sente como arrastada pelo hábito de ceder às suas exigências? A ladeira é tão escorregadia, em matéria de sensualidade sobretudo é tal a fascinacão da vertigem, que nao há nada mais fácil que resvalar ao abismo. Até mesmo tratando-se de orgulho, o declive é mais rápido que se Imagina: mente-se, por exemplo, em matéria leve, para dar uma desculpa e evitar assim uma humilhação; e depois, no sagrado tribunal, corre-se perigo de faltar à sinceridade por medo duma confissão humilhante. A própria segurança exige, pois, a luta contra o amor próprio tanto como contra a sensualidade e a cobiça.
B) Não basta evitar o pecado é mister avançar na perfeição. Ora, qual é ainda aqui o grandíssimo obstáculo, senão o amor do prazer e o horror da cruz? Quantos desejariam ser melhores, tender à santidade, se não fosse o temor do esforço necessário para adiantar e das provações que Deus envia aos seus melhores amigos? É necessário, pois, recordar-lhes o que São Paulo tantas vezes repetia aos primeiros cristãos, a saber, que a vida é um combate, que devemos ter vergonha de ser menos corajosos que os que lutam por uma recompensa terrestre, e, para se prepararem para a vitória, se privam de muitos prazeres lícitos e se impõem duros e penosos exercícios, e tudo isso por uma coroa perecedoura , enquanto a coroa, que nos está prometida, é imortal, «et íllí quidem ut corruptibilem coronam a ccipiant, nos autem íncorruptam» - Temos medo do sofrimento; mas já sabemos das terríveis penas do Purgatório que teremos de padecer durante longos anos, se quisermos viver na imortificação e conceder-nos todos os prazeres que nos lisonjeiam? Quanto mais prudentes não são os homens do século?! Quantos se não impõem ásperos trabalhos, e quantas vezes se não sujeitam a passos humilhantes, para ganharem um pouco de dinheiro e assegurarem uma aposentação honrosa! E nós não havíamos de nos dar à mortificação, para assegurar uma aposentação eterna na cidade do céu? É isto razoável?
É, pois, necessário convencermo-nos de que não há perfeição nem virtude possível sem mortificação. Como ser casto, sem mortificar essa sensualidade que nos inclina tão fortemente aos prazeres perigosos e perversos. Como guardar a temperança, senão reprimindo a gula? Como praticar a pobreza ou até mesmo a justiça, sem combater a cobiça? Como ser humilde, manso e caritativo, sem dominar essas paixões de orgulho, de cólera, de inveja e de ciúme que dormitam no fundo de todo o coração humano? Não há uma só virtude que, no estado de natureza decaída, se possa praticar muito tempo sem esforço, sem luta e, por conseguinte, sem mortificação, Pode-se, pois, dizer com M. Tronson, que «assim como a imortificação é a origem dos vícios e a causa de todos os males, assim a mortificação é o fundamento das virtudes e a fonte de todos os bens».
C) Pode-se até acrescentar que a mortificação, apesar de todas as privações e sofrimentos que impõe, é, ainda mesmo neste mundo, a fonte dos maiores bens, e que, afinal, os cristãos mortificados são em geral mais felizes que os mundanos que se entregam a todos os prazeres. É o que ensina o próprio Cristo Senhor Nosso, ao dizer-nos que os que deixam tudo, para o seguirem, recebem em retorno cento por um ainda mesmo nesta vida: «Qui relíquerít domum vel fratres ... centuplum accipiet, et vitam aeternam possídebit» São Paulo não se exprime diversamente, quando, depois de haver falado da modéstia, isto é, da moderação em todas as coisas, acrescenta que quem a pratica goza daquela paz verdadeira que supera toda a consolação: «pax Dei, quae exsuperat omnem sensum, custodiat corda vestra et intellígentías vestras». E não é ele mesmo um vivo exemplo disto? Oh! Quanto não teve ele que sofrer! que provações terríveis, porque houve de passar na pregação do Evangelho, bem como na luta contra si mesmo, descreve-no-las ele longamente; mas acrescenta que abunda e superabunda de alegria no meio das suas tribulações: superabundo gaudio in omni tribulatione nostra .
O mesmo se diga de todos os demais Santos: é certo que houveram de passar igualmente por longas e dolorosas tribulações: mas os mártires, no meio das suas torturas, diziam que jamais haviam estado em semelhante festim, ”Nunquam tam iucunde epulati sumus». Ao ler as vidas dos Santos, duas coisas nos espantam; as terríveis provações que padeceram, as mortificações que livremente se impuseram a si mesmos; e, por outro lado, a paciência, a alegria, a serenidade no meio destes sofrimentos. E assim, chegam a amar a cruz, a cessar de a temer, a suspirar até por ela, a contar como perdidos os dias em que não tiveram quase nada que sofrer. É este um fenômeno psicológico que assombra os mundanos, mas que consola as almas de boa vontade. É certo que se não pode exigir a principiantes este amor da cruz; pode-se, porém, alegando os exemplos dos Santos, fazer - lhes compreender que o amor de Deus e das almas adoça consideravelmente o sofrímento e a mortificação, e que, se eles se resolverem a entrar generosamente na prática dos pequenos sacrifícios, que estão ao seu alcance chegarão um dia também a amar, a desejar a cruz, e a encontrar nela verdadeiras consolações espirituais. É precisamente o que observa o autor da Imitação de Cristo, num texto que resume perfeitamente as utilidades da mortificação: «In cruce salus, in cruce vita, in cruce protectio ab hostibus, in cruce infusio supernae suavitatis, in cruce robur mentis, in cruce gaudium spiritus, in cruce virtutis summa, in cruce perfectio sanctitatis». O amor da cruz é efetivamente o amor de Deus levado até à imolação; ora este amor, como já dissemos, é indubitavelmente o compêndio de todas as virtudes, a própria essência da perfeição, e por isso mesmo o escudo mais poderoso contra os nossos inimigos espirituais, uma fonte de força e consolação, o melhor meio de aumentar em nós a vida espiritual e assegurar a salvação.
Prática da Mortificação
Princípios.
1 - A mortificação deve abraçar o homem inteiro, corpo e alma; porque o homem inteiro, se não está bem disciplinado, é que é uma ocasião de pecado. É certo que, falando com rígor, só a vontade é que peca; mas a vontade tem por cúmplices e instrumentos o corpo com os seus sentidos exteriores e a alma com todas as suas faculdades. É, por conseguinte, o homem todo que deve ser disciplinado ou mortificado.
2 – A mortificação combate o prazer. É certo que o prazer em si não é um mal; é até um bem, quando se subordina ao fim para que Deus o instituiu.- Ora Deus quis vincular certo prazer ao desempenho do dever, a fim de facilitar o seu cumprimento. Assim, por exemplo, encontramos certo gosto no comer e beber, no trabalho, e noutros deveres deste gênero. Donde se deduz que, no plano divino, o prazer não é um fim senão um meio. Gostar o prazer, com o fim de melhor cumprir o dever, não é pois, proibido; é a ordem estabelecida por Deus. Mas querer o prazer por si mesmo, como fim, sem relacão alguma com o dever, é pelo menos arriscado, pois se corre perigo de escorregar dos prazeres lícitos aos ilícitos. Gozar o parzer, excluindo o dever, é pecado mais ou menos grave, porque é a violação da ordem estabelecida por Deus. A mortificação consistirá; pois, em nos privarmos dos prazeres maus, contrários à ordem providencial, ou à lei de Deus ou da Igreja; em renunciarmos até os prazeres perigosos, para não nos expormos ao pecado; e ainda em nos abstermos de alguns prazeres lícitos, para melhor assegurarmos o império da vontade sobre a sensiblidade
Neste mesmo intuíto, não somente nos privaremos de alguns prazeres, mas até nos infligiremos algumas mortificações positivas; porque é um fato da experiência que não há nada mais eficaz para amortecer a inclinação ao prazer do que impor-se algum trabalho ou sofrimento de super-rogação.
3 – Mas a mortificação deve-se praticar com prudência ou discrição: deve ser proporcionada às forças físicas e morais de cada um e ao cumprimento dos deveres de estado.
A) É mister poupar as forças físicas, porquanto, segundo São Francisco de Sales, «estamos expostos a grandes tentações em dois estados, a saber, quando o corpo está demasiadamente nutrido, ou excessivaente abatido»; é que, efetivamente, neste último caso facilmente se cai em neurastenia, que obriga depois a cuidados perigosos.
B) É preciso poupar as forças morais, isto é, não se impor ao príncípio excessivas prívações que não se poderão continuar por muito tempo e que, no momento em que se deixam, podem conduzir ao relaxamento.
C) Importa sobretudo que estejam em harmonia com os deveres de estado, pois que estes, por obrigatórios, devem prevalecer às obras de super-rogação. Assim, por exemplo, seria mau para uma mãe de família praticar austeridade que a impedissem de cumprir os seus deveres para com o marido e os filhos.
4 - Há uma certa hierarquia nas mortificações: as interiores valem, evidentemente, mais que as exteriores, por combaterem mais diretamente a raiz do mal. Mas importa não esquecer que estas facilitam muito a prática daquelas; quem quisesse disciplinar a imaginação, sem mortificar os olhos, não chegaria a grandes resultados, precisamente porque estes fornecem àquela as imagens sensíveis que lhe dão pasto. Foi erro dos modernizantes mofar das austeridades dos séculos cristãos. De fato, os Santos de todas as épocas, tanto os que foram beatificados ou canonizados nestes últimos tempos como os outros, castigaram asperamente o próprio corpo e os sentidos exteriores, bem persuadidos que, no estado de natureza decaída, é o homem todo que deve ser mortificado, para pertencer totalmente a Deus.
Vamos, pois, percorrer sucessivamente todos os gêneros de mortificação, começando pelos exteriores, para chegar aos interiores: é esta a ordem lógica; na prática, porém, é mister saber combinar e dosar uns e outros.
I. Da Mortificação do Corpo e dos Sentidos Externos
1 - Sua razão de ser:
a) Nosso Senhor Jesus Cristo havia recomendado aos seus discípulos a prática moderada do jejum e abstinência, a mortificação da vista e do tato. São Paulo compreendia tão bem a necessidade de mortificar o corpo, que o castigava severamente, para escapar ao pecado e à reprovação; «Castigo corpus meum et in servi tu tem redigo, ne forte, cum aliis praedicaverim, ipse reprobus efficiar». A própria Igreja interveio para prescrever aos fiéis certos dias de jejum e abstinência.
b) Qual é a razão de tudo isto? É indubitável que o corpo, bem disciplinado, é um servidor útil, necessário até, cujas forças importa poupar, para as colocar ao serviço da alma. No estado, porém, de natureza decaída, o corpo busca gozos sensuais, sem fazer caso do que é permitido ou vedado; tem até inclinação especial para os prazeres ilícitos e muitas vezes se revolta contra as faculdades superiores que lhos querem interdizer. Inimigo perigosíssimo, porque nos acompanha por toda a parte, à mesa, no leito, nas jornadas, e muitas vezes até encontra cúmplices, dispostos a excitar-lhe a sensualidade e luxúria. É que, na verdade, os seus sentidos são outras tantas portas abertas, pelas quais sorrateiramente se insinua o sutil veneno do prazer vedado. É, pois, absolutamente necessário velar sobre ele, dominá-lo, reduzi-lo à servidão; senão, ver-nos-emos atraiçoados por ele.
2 - Modéstia do Corpo.
Para mortificar o corpo, comecemos por observar perfeitamente as regras da modéstia e urbanidade; nisto se encontra abundante matéria de mortificação. O princípio, que nos deve servir de regra, é o de São Paulo: «Não sabeis que os vossos corpos são membros de Santo que reside em vós? Nescitis quoniam CaIpora vestra membra sunt Christi? ... Membra vestra templum sunt Spiritus Sancti» .
A) É mister, pois, respeitar o nosso corpo como um templo santo, como um membro de Cristo. Nada desses trajes mais ou menos indecentes que não são feitos senão para provocar a curiosidade e a volúpia. Cada qual traga o vestido reclamado pela sua condição, simples e modesto, mas sempre asseado e decente. Nada mais ponderado que os conselhos de São Francisco de Sales a este propósito «Sede asseada, Filotea, e nada haja em vós destoante e mal posto ... mas fugi o mais possível das vaidades e afetações, das curiosidades e loucuras. Propendei sempre, quando for possível, para a parte da singeleza e modéstia, que sem dúvida é o maior adorno da formosura e a melhor desculpa da fealdade ... As mulheres vãs fazem duvidar da sua castidade; pelo menos, se a têm, não transparece entre tantas superfluidades e bagatelas» ... São Luís diz numa palavra, «que cada qual se deve vestir conforme seu estado, de sorte que as pessoas sisudas e os homens de bem não possam dizer: é de mais; nem os jovens: é de menos».Quanto aos religiosos e religiosas, bem como aos eclesiásticos, todos estes têm sobre a forma e matéria dos vestidos regras a que se devem conformar. É inútil dizer que o mundanismo e afetação estariam completamente deslocados entre eles e não poderiam deixar de escandalizar os próprios mundanos.
B) A compostura do porte exterior é igualmente uma excelente mortificação ao alcance de todos. Evitar com cuidado as posições moles e efeminadas, conservar o corpo direito sem violência e afetação, nem curvado, nem inclinado para um lado ou outro; não mudar com demasiada frequência de posição; não cruzar nem os pés nem as pernas; não se apoiar indolentemente na cadeira ou sobre o genuflexório; evitar os movimentos bruscos e os gestos desordenados: eis aqui, entre centenas de outros, meios de nos mortificarmos sem perigo para a saúde, sem atrair as atenções, os quais nos dão sobre o próprio corpo grandíssimo domínio.
C) Há outras mortificações positivas que os penitentes generosos se comprazem em se impor a si mesmos, para macerarem o corpo, acalmarem os seus ardores intempestivos e estimularem o desejo da piedade: os mais comuns são os pequenos cilícios de ferro com que se apertam os braços, as cadeias com que se cingem os rins, as cinturas ou escapulários de crina, e alguns bons golpes de disciplina, quando é possível torná-la, sem atrair atenções. (Voltar às práticas de mortificação corporal é um dos meios mais eficazes para recuperar a alegria e, com ela, a fervor; “Voltemos às nossas mortificações corporais, maceremos a nossa carne, façamos correr algumas gotas do nosso sangue, e seremos felizes como nunca. Se o espírito das Santas respira a alegria. se os monges e os religiosas são criaturas animadas dessa franca jovialidade que o mundo não sabe explicar, é unicamente porque os seus corpos, como o de S. Paulo, são castigados e reduzidos à servidão com inflexível severidade». -FABER, Saint Sacrement, t. 1, p. 228,229). Em tudo isto, é mister consultar com todo o cuidado o parecer do próprio diretor, evitar tudo o que porventura cheirasse a singularidade ou lisonjeasse a vaidade, sem falar do que pudesse ser contrário à higiene ou à limpeza; o diretor não permitirá estas coisas senão com muita discrição, e somente por algum tempo, para experiência; caso note inconveniente de qualquer gênero, é suprimi-las imediatamente.
3 - Modéstia dos Olhos.
A) Há olhares gravemente culpados, que ofendem não somente o pudor, mas até a castidade em si mesma e que, por conseguinte, é forçoso evitar. Outros há que são perigosos, por exemplo, fixar a vista sem razão em pessoas ou objetos que naturalmente hão de suscitar tentações. Assim, a Sagrada Escritura nos adverte que não detenhamos o olhar numa donzela, não seja caso que a sua formosura seja para nós objeto de escãndalo: «Virginem ne conspicias, ne forte scandalizeris in decore illius». E hoje, então, que a licença das vitrinas, a imodéstia do trajar e a imoralidade das exibições teatrais e de certos salões criam tantos perigos, que recato não é preciso para evitar o pecado?
B) É por isso que o cristão sincero, que quer salvar a sua alma, custe o que custar, vai mais longe; para estar seguro de não sucumbir à sensualidade, mortifica a curiosidade dos olhos, evitando, por exemplo, olhar pela janela, para ver quem passa, conservando os olhos modestamente baixos, sem afetação, nas viagens ou passeios. Pelo contrário, compraz-se em os descansar sobre algum objeto, imagem piedosa, campanário, cruz, estátua, para se excitar ao amor de Deus e dos Santos.
4 - Mortificação do Ouvido e da Língua.
A) Esta mortificação exige que não se diga nem ouça nada contrário à caridade, à pureza, à humildade e às demais virtudes cristãs; porquanto, como diz São Paulo, as conversas más corrompem os bons costumes, «corrumpunt mores bonos colloquia prava». E quantas almas, na verdade, não têm sido pervertidas por terem escutado conversas desonestas ou contrárias à caridade?! As palavras lúbricas excitam a curiosidade mórbida, revoltam as paixões, inflamam desejos e provocam ao pecado. As palavras pouco caritativas suscitam divisões até nas famílias, desconfianças, inimizades, rancores. É necessário, pois, velar sobre as mínimas palavras, para evitar tais escãndalos, e saber fechar os ouvidos a tudo quanto possa pertubar a pureza, a caridade e a paz.
B) Mas, para melhor conseguirmos este fim mortificaremos, de vez em quando, a curiosidade, evitando fazer perguntas acerca do que a possa lisonjear, ou reprimindo esse prurido de falar que arrasta a conversas não somente inúteis, mas até perigosas: «in multiloquio non deerit peccatum»
C) E, como os meios negativos não bastam, havemos de ter cuidado de dirigir a conversa para assuntos não somente inofensivos, mas até bons, honestos e, de vez em quando, edificantes, sem contudo nos tornarmos pesados aos outros com observações demasiado sérias que não venham naturalmente.
5 - Mortificação dos Outros Sentidos.
O que dissemos da vista, do ouvido e da língua, aplica-se aos outros sentidos; voltaremos a tratar do gosto, ao falar da gula, e do tato a propósito da castidade. Quanto ao olfato basta dizer que o uso imoderado de perfumes não é muitas vezes mais que um pretexto para satisfazer a sensualidade e talvez para excitar a luxúria. Um cristão sério não usa de perfumes senão com muita moderação, por motivos de grande utilidade; os religiosos e eclesiásticos devem ter como norma não usar nunca deles.
II - Da Mortificação dos Sentidos Internos
Os dois sentidos internos, que é preciso mortificar, são a imaginação e a memória, que geralmente atuam de harmonia, pois que o trabalho da memória é acompanhado de imagens sensíveis.
1 - Princípio.
São duas faculdades preciosas, que não somente fornecem à inteligência os materiais de que esta necessita para trabalhar, senão que lhe permitem expor a verdade com imagens e fatos que a tornam mais perceptível, mais viva e, por isso mesmo, mais interessante: um resumo pálido e frio não teria encantos para o comum dos mortais. Não se trata, pois, de atrofiar estas faculdades, senão de as disciplinar e subordinar a sua atividade ao império da razão e da vontade; aliás, deixadas a si mesmas, povoam a alma dum sem-número de lembranças e imagens que a dissipam, desperdiçam as suas energias, fazem-lhe perder tempo precioso na oração e no trabalho, e criam mil tentações contra a pureza, caridade, humildade e demais virtudes. É, pois, necessário discipliná-las e pô-las ao serviço das faculdades superiores.
2 - Regras que se devem seguir.
A) Para reprimir os extravios da memória e da imaginação, aplicar-nos-emos, antes de mais nada, a afugentar implacavelmente, desde o princípio, isto é, logo que a consciência nos adverte, as imagens ou lembranças perigosas que, recordando-nos um passado escabroso, ou transportando-nos no meio das seduções do presente ou do futuro, seriam para nós uma fonte de tentações. Mas, como há muitas vezes uma espécie de determinismo psicológico, que nos faz passar por devaneios fúteis aos perigos, premunir-nos-emos contra esta engrenagem, mortificando os pensamentos inúteis, que já nos fazem perder tempo precioso, e preparam o caminho a outros mais perigosos ainda: a mortificação dos pensamentos inúteis, dizem os Santos, é a morte dos pensamentos maus.
B) Para melhor se vir a este resultado, o meio positivo mais conducente, é aplicar inteiramente a alma toda ao dever presente, aos nossos trabalhos, estudos e ocupações habituais. É, afinal, o melhar meio de conseguir fazer bem o que se faz, concentrando toda a atividade na ação presente: age quod agis. - Lembrem-se os jovens que, para progredirem nos estudos, como nos demais deveres do próprio estado, é mister dar mais lugar ao trabalho da inteligência e da reflexão, e menos às faculdades sensíveis: deste modo assegurarão o futuro e evitarão os devaneios perigosos.
C) É utilíssimo, enfim, servir-se da imaginação e da memória, para alimentar a piedade, buscando nos Livros Santos, nas orações litúrgicas e nos autores espirituais os mais belos textos, as mais formasas comparações e imagens; utilizar a imaginação para andar na presença de Deus, e representar-se por miúdo os mistérios de Cristo Senhor Nosso e da Santíssima Virgem. E assim, em lugar de atrofiarmas a imaginação, a povoaremos de piedosas representaçoes que desterrarão as que poderiam ser perigosas e nos porão em condições de melhor compreender e explicar aos nossos ouvintes as cenas evangélicas.
III. Da Mortificação das Paixões
As paixões, no sentido filosófico do termo, não são necessária e absolutamente más: são forças vivas, muitas vezes impetuosas, que se podem utilizar para o bem como para o mal, contanto que as saibamas disciplinar e orientar para um fim nobre. Mas, na linguagem popular e em certos autores espirituais, emprega-se esta palavra em sentido pejorativo, para designar as paixões más. Vamos pois: 1 - recordar as principais noções psicológicas sabre as paixões; 2 - indicar as seus bons e maus efeitos, 3 - traçar regras para o seu bom uso.
A psicologia das paixões. Não fazemos aqui mais que relembrar o que se expõe mais longamente na Psicologia:
1 - Noção. As paixões são movimentos impetuosos do apetite sensitivo para o bem sensível com repercussão mais ou menos forte sobre o organismo.
a) Na base da paixão, há pois, um certo conhecimentao, ao menos sensível, dum bem esperado ou adquirido ou dum mal contrário a este bem; deste conhecimento é que brotam os movimentos do apetite sensitivo.
b) Estes movimentos são impetuosos e distinguem-se assim dos estados afetivos agradáveis ou desagradáveis que são calmos, tranqüilos, sem aquele ardor, aquela veemêncía que há nas paixões.
c) Precisamente porque são impetuosos e atuam fortemente sobre o apetite sensitivo, é que têm repercussão até no organismo físico, por causa da estreita união entre o corpo e a alma. Assim, a cólera faz afluir o sangue ao cérebro e distende os nervos, o medo faz empalidecer, o amor dilata a coração, o temor cantrai-a. Nem em todos, porém, se apresentam no mesmo grau estes efeitos fisiológicos, que dependem do temperamento de cada um e da intensidade da paixão, bem como do domínio que cada qual adquire sobre si mesmo.
Diferem, pois, as paixões dos sentimentos, que são movimentos da vontade, e, por conseguinte, supõem conhecimento da inteligência e, com serem fortes, não têm a violência das paixões. Assim é que há amor-paixão e amor-sentimento, temor passional e temor intelectual. - Acrescentemos que no homem, animal racional, as paixões e os sentimentos se combinam muitas vezes, quase sempre, em doses variadíssimas, e que é pela vontade, auxiliada pela graça, que chegamos a transformar em nobres sentimentos as paixões mais ardentes, subordinando estas àqueles.
2 - O seu número. Enumeram-se geralmente onze paixões, que derivam todas do amor, como excelentemente demonstra Bassuet «As nossas demais paixões referem-se todas unicamente ao amor que a todos encerra e excita».
1) O amor é a paixão de se unir a uma pessoa ou de possuir uma coisa que agrada.
2) O ódio é a paixão de afastar de nós qualquer coisa que nos desagrada; nasce do amor, neste sentido que odiamos o que se opõe ao que amamos. Assim, por exemplo, eu não odeio a doença, senão porque amo a saúde; não odeio uma pessoa, senão porque ela me põe algum abstáculo à posse do que amar.
3) O desejo consiste em procurar o bem ausente, e nasce de amar-mos esse bem.
4) A aversão (ou fuga) leva-nos a afastar o mal que se avizinha de nós.
5) A alegria não é mais que a fruição do bem presente.
6) A tristeza, pelo contrário, aflige-se e desvia-se do mal presente.
7)A audácia (ousadia ou coragem) esforça-se por se unir ao objeto amado, cuja aquisição é dificultosa.
8) O temor impele-nos a fugir dum mal difícil de evitar.
9) A esperança tende com ardor para o abjeto amado, cuja aquisição é possível, se bem que dificultosa.
10) O desespero nasce na alma, quando a aquisição do objeto amado parece impossível.
11) A cólera repele violentamente a que nos faz mal e excita o desejo da vingança.
As seis primeiras paixões, que têm origem no apetite concupiscível, são comumente chamadas pelas modernas paixões de gozo; as outras cinco, que se referem ao apetite irascível, denominam-se paixões combativas.
Os efeitos das Paixões
Os Estóicos pretendiam que as paixões são radicalmente más e que, por conseguinte, devem ser suprimidas; os Epicureus divinizam as paixões e proclamam a altas vozes que é um dever segui-las. É o que os nossos modernos epicuristas chamam: viver a sua vida. O Cristianismo conserva o meio entre esses dois excessos: nada do que Deus pôs na natureza humana é mau. O próprio Cristo Senhor Nosso teve paixões bem ordenadas: amou não somente com a vontade, senão também com o coração e chorou sobre Lázaro e sobre Jerusalém, a infiel; deixou-se possuir duma santa cólera, sofreu o temor, a tristeza, o tédio; mas soube conservar essas paixões com o império da vontade e subordiná-las a Deus. Quando, pelo contrário, as paixões são desordenadas, produzem os mais perniciosos efeitos; é preciso, pois, mortificá-Ias, discipliná-las.
Efeitos das Paixões Desordenadas. Chamam-se desordenadas as paixões que tendem para um bem sensível proibido, ou até mesmo para um bem permitido, mas com demasiada sofreguidão e sem referir a Deus. Ora, estas paixões desordenadas:
A)Cegam a Alma,lançando-se para o seu objeto com impetuosidade, consultar a razão, deixando-se guiar pelo instinto ou pelo prazer. Ora, há um elemento perturbador que tende a falsear o juízo e a obscurecer a reta razão. Como o apetite sensitivo é cego, por natureza, se a alma se guiar por ele, cega-se a si mesma: em vez de se deixar conduzir pelo dever, deixa-se fascinar pelo prazer do momento. É como uma nuvem que a impede de ver a verdade; obcecada pela poeira que as paixões levantam, a alma já não vê claramente a vontade divina nem o dever que se lhe impõe de ser apta para julgar retamente as coisas.
B)Fatigam a Alma e fazem Sofrer
1- As paixões, diz São João da Cruz, ”são como rapazitos inquietos e descontentadiços, que sempre estão pedindo à mãe ora isto, ora aquilo, e não acabam de ficar satisfeitos. E assim como se cansa e fatiga o que cava por cobiça o tesouro, assim de cansa e fatiga a alma por conseguir o que seus apetites lhe pedem; e, ainda que o consiga por fim, sempre se cansa, porque nunca se satisfaz…E cansa-se e aflige-se a alma seus apetites, porque é ferida, agitada e perturbada por eles, como a água pelos ventos”
2 - Daqui um sofrimento tanto mais intenso quanto mais vivas são as paixões: porque elas atormentam a pobre alma, até serem contentadas, e, como o apetite vem com o comer, reclamam as paixões cada vez mais; se a consciência protesta, impacientam-se, agitam-se, solicitam a vontade para que ceda aos seus caprichos que incenssantemente renascem: é tortura inexprímível.
c) Enfraquecem a Vontade. Solicitada em sentidos diversos por essas paixões rebeldes, vê-se forçada a vontade a dispersar as próprias forças, que por isso mesmo vão enfraquecendo. Tudo o que cede às paixões, aumenta nelas as exigências e diminui em si as energias. Semelhantes às gameleiras inúteis e vorazes que brotam do tronco duma árvore, os apetites que se não dominam, vão-se desenvolvendo e roubando força à alma, como os rebentos parasitas à árvore. E não tardará o momento em que alma enfraquecida caia no relaxamento e na tibieza, disposta a todas as capitulações.
d) Maculam a alma. Quando esta, cedendo às paixões, se une às criaturas abate-se ao nível delas e contrai a sua malícia e as suas manchas; em vez de ser imagem fiel de Deus, torna-se imagem das coisas a que se apega; grãos de pó, manchas de lodo vêm embarciar-Ihe a beleza e opor-se à união perfeita com Deus.«Um só apetite desordenado, diz São João da Cruz , ainda quando não seja de matéria de pecado mortal, basta para pôr uma alma tão escura, manchada e feia que de modo nenhum pode convir com Deus em qualquer união (íntima), até dele se purificar. Qual será, pois, a fealdade da que de todo está desordenada em suas próprias paixões e entregue a seus apetites, e quão distanciada estará da pureza de Deus! Não se pode explicar com palavras, nem ainda campreender-se com o entendimento a variedade de imundície que a variedade de apetites causam na alma ... ». Cada apetite depõe, a seu modo, a sua parte especial de impureza e fealdade na alma.
Conclusão. Quem quiser, pois, chegar à união com Deus, tem que mortificar todas as paixões, ainda as mais pequenas, enquanto são voluntárias e desordenadas. É que a união perfeita supõe que em nós não há nada contrário à vontade de Deus, nenhum apego voluntário à criatura e a nós mesmos. Tanto que, de propósito deliberado, nos deixamos extraviar por qualquer paixão, deixa de haver união perfeita entre a nossa vontade e a de Deus. lsto é sobretudo verdade das paixões ou apegos habituais, que paralisam a vontade, até mesmo quando são leves. É abservação de São João da Cruz «que a avezinha esteja presa a um fio delgado ou grossa, pouco importa: não lhe será possível voar, senão depois de o haver quebrado».
Utilidades das paixões bem ordenadas. Quando, pelo contrário, estão as paixões bem ordenadas, isto é, orientadas para o bem, moderadas e submetidas à vontade, têm as mais preciosas utilidades, porque são forças vivas ardentes, que nos vêm estimular a atividade da inteligência e da vontade e prestar-lhes desse modo poderoso auxílio:
a) Atuam sabre a inteligência, excitando em nós ardor no trabalho, desejo de conhecer a verdade. Quando um objeto nos apaixona, no bom sentido da palavra, somos todos olhos e ouvidos, para o conhecermos bem, o espírito aprende mais facilmente a verdade, a memória é mais tenaz para a reter. Eis aqui, por exemplo, um inventor animado de ardente patriotismo: vede como trabalha com mais ardor, tenacidade e perspicácia, precisamente porque quer prestar serviço à sua pátria. Do mesmo modo um estudante, sustentado pela nobre ambição de pôr a sua ciência ao serviço dos seus compatriotas, faz mais esforços e chega a resultados mais apreciáveis. Mas sobretudo quem ama apaixonadamente a Jesus Cristo, estuda o Evangelho, com mais entusiasmo, compreende-o e encontra nele maior sabor; as palavras da divino Mestre são para ele oráculos, que inundam a sua alma de luzes deslumbrantes.
b) Atuam igualmente sabre a vontade, para a arrastar e decuplar as suas energias: a que se faz com amor faz-se melhor, com mais aplicação, constãncia, e feliz êxito. Que tentativas não faz o amor de mãe para salvar um filho? Que de atos heróicos inspirados pelo amor da pátria?! Do mesmo modo, quando um santo, está apaixanado de amor de Deus e das almas, não recua diante de nenhum esforço, sacrifício ou humilhação, para salvar os seus irmãos. Nãa há dúvida que quem impera estes atos de zelo é a vontade, mas a vontade, inspirada, estimulada, sustentada par uma santa paixão. Ora, quando os dois apetites, sensitivo, e intelectual, por outros termos, quando o coração e a vontade trabalham na mesma direção e unem as suas forças, os resultados são evidentemente muito mais apreciáveis e duradouros. lmporta, pois, ver como se podem utilizar as paixões.
Do Bom Uso das Paixões
Recordando as princípios psicológicos que podem facilitar-nos a tarefa, indicaremos como se resiste às paixões más, como se orientam as paixões para o bem, e como se moderam.
1. Princípios psicológicos que se devem utilizar Para dominar as paixões, é preciso antes de tudo, contar com a graça de Deus e, por conseguinte, com a oração e os sacramentos; mas é mister usar também duma tática judiciosa, fundada na psicologia.
a) Qualquer idéia tende a provocar o ato correspondente, mormente se é acampanhada de vivas emoções e fortes convicções. Assim, pensar no prazer sensível, representando-a vivamente com a imaginação, provoca um desejo e muitas vezes um ato sensual; pela contrário, pensar em nobres ações, representar-se a si própria os felizes resultados que produzem, excita a desejo de praticar atos desse gênero. Isto é sobretudo verdade da idéia que não permanece abstrata, fria, incolor, mas que, sendo acampanhada de imagens sensível, se torna concreta, viva, e, por isso mesmo, arrebatadora; é nesse sentido que se pode dizer que a idéia é uma força, um primeiro impulso, um começo de ação. Quem desejar, pois, dominar as paixões más, tem que afastar com cuidado qualquer pensamento, qualquer imaginação que represente o prazer mau como atraente; quem, pelo contrário, quiser cultivar as boas paixões ou os bons sentimentos, tem que alimentar em si pensamentos e imagens que mostrem o lado belo do dever e da virtude, tornando essas reflexões, quanto passível, concretas e vivas.
b) A influência duma idéia prolonga-se enquanto não é eclipsada por outra idéia mais forte que a suplante; assim, um desejo sensual continua a solicitar a vontade, enquanto não é expulsa por um pensamento mais nobre que se apodere da alma. Quem pretende, pois, desembaraçar-se dele, tem que se entregar, por meio duma leitura ou estudo interessante, a uma série de pensamentos totalmente diferentes ou contrários; quem, pelo contrário, quer intensificar um bom desejo, prolonga-o, meditando sobre coisas que a possam alimentar.
c) A influência duma idéia aumenta, associada a outras idéias conexas, que a enriquecem e lhe dão maior amplidão. Assim, o pensamento e desejo de salvar a própria alma torna-se mais intenso e eficaz, se for associado à idéia de trabalhar para salvar a alma dos nossos irmãos, como se vê, por exemplo, em São Francisco Xavier.
d) Enfim, a idéia atinge a máxima potência, quando se torna habitual, absorvente, uma espécie de idéia fixa que inspira todos os pensamentos e todas as ações. É isto o que se nota, sob o aspecto natural, naqueles que não têm senão uma idéia, por exemplo, a de fazer esta ou aquela descoberta; e sob o aspecto sobrenatural, naqueles que se deixam penetrar de tal modo duma máxima evangélica, que esta se torna a regra da sua vida, por exemplo: Vende tudo e dá-o aos pobres; .ou: que importa ao homem ganhar o universo, se vem a perder a sua alma; ou ainda: para mim a vida é Cristo.É necessário, pois, ter a mira em arreigar prafundamente na alma algumas idéias diretrizes, dominadoras, absorventes, depois reduzi-las à unidade por meio duma divisa ou máxima, que as concretize e conserve incessantemente presentes ao espírito, por exemplo: Deus meus et omnia! Ad maiorem Dei gloriam! Deus só basta! Quem tem Jesus tem tudo! Esse cum Iesu dulcis paradisus! Com uma divisa destas, será mais fácil triunfar das paixões más e utilizar as boas.
2. Como combater as Paixões Desordenadas. Tanto que a consciência nos adverte que em nossa alma se levanta um movimento desordenado, é necessário apelar para todos as meios naturais e sobrenaturais, para a refrear e dominar.
a) Logo desde a princípio, é mister usar do poder de inibição da vontade, auxiliada pela graça, para travar esse movimento. Assim, por exemplo, importa evitar os atos ou gestos exteriores, que não podem senão estimular ou intensificar a paixão: quem se sente invadido pela cólera, deve evitar os gestos desordenados, os clamores, calando-se até que volte o sossego. Tratando-se duma afeição demasiadamente viva, devem-se evitar os encontros com a pessoa amada; é preciso fugir de lhe falar e sobretudo de exprimir de qualquer modo, ainda mesmo indireta, a afeição que se sente para com ela. Assim, vai enfraquecendo a paixão pouco a pouco.
b) Mais ainda: tratando-se duma paixão de gozo, é necessário esquecer o objeto dessa paixão. Para a conseguirmos:
1) Cumpre-nos aplicar fortemente a imaginação e o espírito a qualquer ocupação honesta que nos possa distrair do objeto amado: por exemplo, o estudo, a solução dum problema, o jogo, o passeio com outros, a conversação, etc.
2) Quando começa a restabelecer-se a paz, é apelar para as reflexões de ordem moral, que possam armar a vontade contra a sedução do prazer; considerações naturais, como os inconvenientes, para o presente e para o futuro duma ligação perigosa, duma amizade demasiado sensível ; mas sobretudo considerações sobrenaturais, tais como a impassibilidade de avançar na perfeição, enquanto se mantêm esses apegos, as cadeias que se forjam, a salvação em perigo, o escândalo que se pode dar, etc. Tratando-se de paixões combativas, como a cólera, o ódio, depois de termos fugido, um momento, para diminuir a paixão, podemos muitas vezes tomar a ofensiva, pondo-nas em frente da dificuldade, convencendo-nas pela razão e sobretudo pela fé que entregar-se à cólera ou ao ódio é indigna dum homem e dum cristão; que permanecer calmo, senhor de si, é quanto há de mais nobre, digna e conforme ao Evangelho.
c) Procurar-se-á, enfim, fazer atos positivos contrários à paixão. Quem experimentar antipatia para com uma pessoa, procederá como se quisesse ganhar-lhe a simpatia, esforçar-se-á por lhe prestar serviço, ser amável para com ela, e sobretudo orar por ela. Não há nada que abrande o caração como uma oração sincera por um inimigo. Quem, pelo contrário, sente afeição excessiva para com uma pessoa, deve evitar a sua campanhia, ou, sendo isso impossível, testemunhar-lhe essa fria cortesia, essa espécie de indiferença que se tem para com o comum dos homens. Estes atos contrários acabam por enfraquecer e fazer desaparecer a paixão, mormente se sabem cultivar as boas paixões.
3. Como orientar as Paixões para o Bem. Dissemos acima que as paixões em si não são más; podem, pois, ser orientadas para o bem, todas sem exceção alguma:
a) O amor e a alegria podem-se nortear para as afeições puras e legítimas da família, para as amizades boas e sobrenaturais; mas sobretudo para Nosso Senhor Jesus Cristo, que é de todos os amigos o mais terno, o mais generoso, o mais dedicado. É, pois, neste sentido que importa dirigir o nosso coração, lendo, meditando, pondo em prática os dois belos capítulos da lmitação que têm sido e continuam sendo o encanto de tantas almas, De amore Iesu super omnia, De familiari amicitia Iesu.
b) O ódio e a aversão voltam-se contra o pecado, o vício e tudo quanto a ele conduz, para o aborrecer e evitar: «Iniquitatem odio habui».
c) O desejo transforma-se numa legítima ambição, a ambição natural de honrar a sua família e a seu país, a ambição sobrenatural de vir a ser um santo, um apóstolo.
d) A tristeza, em vez de degenerar em melancolia, converte-se numa doce resignação em presença das provações que para o cristão são uma semente de glória, ou numa terna compaixão para com Jesus que sofre e é ofendido, ou para com as almas aflitas.
e) A esperança torna-se esperança cristã, confiança inabalável em Deus, e multiplica as nossas energias para o bem.
f) O desespero transforma-se em justa desconfiança de nós mesmos, fundada em nossa impotência e pecados, mas temperada pela confiança em Deus.
g) O temor, em lugar de ser um sentimento deprimente que enfraquece a alma, é no cristão uma fonte de energia: o cristão teme o pecado e o inferno, mas este temor legítimo arma-o de coragem contra o mal; teme sabretudo a Deus, treme de O ofender e despreza o respeito humano.
h) A cólera, em vez de nos roubar a domínio sabre nós mesmos, não é senão uma justa e santa indignação, que nos torna mais fortes contra o mal.
i) A audácia converte-se em intrepidez diante das dificuldades e perigos: quanto mais dificultosa é uma coisa, tanto mais digna dos nossos esforços nos parece.
Para se chegar a este feliz resultado, nada vale tanto como a meditação, acompanhada de piedosos afetos e generosas resoluções. É por ela que se forma um ideal e se radicam profundas convicções que dele nos aproximam cada dia. E na verdade, o que importa é provocar e conservar na alma idéias e sentimentos conformes às virtudes que se querem praticar, afastar pelo contrário as imagens e impressões conformes aos vícios que se pretendem evitar. Ora, para atingir este resultado, neste trato íntimo com Deus, infinita verdade e bondade, torna-se dia a dia mais amável a
virtude, mais odioso o vício, e a vontade, fortificada por essas convicções, arrasta as paixões para o bem, em vez de se deixar arrastar a si mesma por elas para o mal.
4. Como se devem Moderar as Paixões
a) Até mesmo quando as paixões estão orientadas para o bem, importa saber moderá-las, isto é, submetê-las à direção da razão e da vontade, as quais por seu turno devem ser guiadas pela fé e pela graça. Sem o que, as paixões seriam por vezes excessivas, porque de sua natureza são
demasiado impetuosas. Assim, por exemplo, o desejo de orar com fervor pode degenerar em contensão de espírito, o amor para com Jesus Cristo pode traduzir-se por meio de esforços de sensibilidade que consomem o corpo e a alma; a zelo intempestivo vem a dar em esgotamento nervoso, a indignação converte-se em cólera, a alegria degenera em dissipação. Estamos muito particularmente expostos a estes excessos neste século, em que a atividade febril dos nossos contemporâneos se torna contagioso. Ora estes movimentos ardentes, ainda quando tendem para a bem, fatigam e gastam o espírito e o corpo e, em todo caso, não podem ser muito duradouros, violenta non durant; e contudo o que faz maior bem é a
continuidade no esforço.
b) lmporta, pois, sujeitar a própria atividade ao juízo dum prudente diretor e seguir os conselhos da sabedoria:
1) Habitualmente, é necessário ter, na cultura dos nossos desejos e paixões, uma certa moderação e tranqüilidade, evitando a tensão permanente: é necessário poupar a montada, para se chegar ao termo da carreira, e por conseqüência evitar a azáfama excessiva que consome as forças; a nossa pobre máquina humana não pode estar constantemente sob pressão, aliás arrebenta.
2) Antes dum grande esforço que é indispensável fazer-se, ou depois dum dispêndio considerável de energia, requer a prudência que se imponha algum repouso às ambições mais legítimas, ao zelo mais ardente e mais puro. É o exemplo que nos deixou Nosso Senhor Jesus Cristo; de tempos em tempos
convida os seus discípulos ao descanso: «Venite seorsum in desertum locum et requiescit pusillum» Assim dirigidas e moderadas, as paixões, longe de serem obstáculos à perfeição, serão meios eficacíssimos para dela nos aproximarmos cada dia; e a vitória obtida sobre elas permitir-nos-á
disciplinar melhor as faculdades superiores.
Da Mortificação das Faculdades Superiores.Estas faculdades superiores, que constituem o homem, enquanto homem, são a inteligência e a vontade. Como foram também atingidas pelo pecado original, é evidente que precisam igualmente de ser disciplinadas.
I. Mortificação ou Disciplina da Inteligência
O entendimento foi-nos dado para conhecer a verdade. Deus sobretudo e as coisas divinas. Deus é que é o verdadeiro sol dos espíritos; ilumina-nos por meio de duas luzes a luz da razão e a da fé. No estado presente, não podemos chegar à verdade integral sem o concurso delas ambas; menosprezar uma ou outra, é cegar-se a si mesmo. E tanto mais importante é disciplinar a inteligência quanto é certo que é ela que ilumina a vontade e lhe permite orientar-se para o bem; é ela que, com o nome de consciência, é a regra da nossa vida moral e sobrenatural. Mas, para ser assim de fato, é indispensável mortificar as suas tendências defeituosas. Eis as principais: a ignorãncia, a curiosidade e a precipitação, o orgulho e a teimosia:
A ignorância combate-se pela aplicação metódica e a constante ao estudo, mormente ao estudo de quanto se refere a Deus, nosso fim último, e aos meios de O alcançar. E na verdade, bem desarrazoado seria ocupar-se o homem de todas as ciências e descurar a da salvação. É certo que cada um deve estudar, nas ciências humanas, as que se referem aos seus deveres de estado; mas, sendo como é dever primordial de todos conhecer a Deus para O amar, descurar este estudo seria inescusável. E contudo, quantos cristãos, muito instruídos neste ou naquele ramo das ciências, não chegam a passuir nem sequer um conhecimento rudimentar das verdades cristãs, dos dogmas, da moral e da ascética! Hoje, felizmente, manifesta-se algum progresso nas classes elevadas, e há círculos de estudo em que se profundam com o mais vivo interesse todas as questões religiosas, sem excetuar a espiritualidade. Deus seja bendito, e oxalá que este movimento alastre!
A curiosidade é uma doença do espírito que não faz senão aumentar a ignorância religiosa: é que, na verdade, enquanto nos arrasta com excessivo ardor para os conhecimentos mais agradáveis que úteis, faz-nos perder tempo muito precioso. Muitas vezes é acompanhada a ansiedade e precipitação, que faz nos deixemos absorver nos estudos que lisonjeiam a curiosidade, com detrimento das que são mais importantes. Para Triunfar dela é Mister:
1) Estudar em primeiro lugar não o que agrada, senão o que é útil, sobretudo o que é necessário: «id prius quod est magis necessarium», diz Sãa Bernardo, não nos ocupando do resto senão por modo de recreação. Por conseguinte, não se deve ler senão com sobriedade o que alimenta a imaginação mais que o espírito, como a maior parte dos romances, ou o que se refere às novidades e boatos do mundo, como os jornais e certas revistas.
2) Nestas leituras, cumpre-nas evitar a sofreguidão excessiva, não querer devorar rapidamente um volume inteiro. Ainda quando se trate de boas leituras, importa fazê-las lentamente, para melhor se compreender e saborear o que se lê.
3) O que mais facilmente conseguiremos, se estudarmos, não por curiosidade, não para nos comprazermos na própria ciência, senão por um motivo sobrenatural, para nos edificarmos a nós mesmos e edificarmos os demais: «ut aedificent, et caritas est ... ut aedificentur, et prudentia est». Porquanto, como diz com razão Santo Agostinho, a ciência deve ser posta ao serviço da caridade: «Sic adhibeatur scientia tanquam machina quaedam per quam structura caritatis assurgat». lsto é verdade, até mesmo na estudo das questões de espiritualidade. É que, efetivamente, não falta quem, nos seus estudos, busque antes a satisfação da curiosidade e do orgulhao do que a pureza do coração e a prática da mortificação.
O orgulho deve-se, pois, evitar, esse orgulho do espírito, que é mais perigoso e difícil de curar que a da vontade, diz Scupoli. É este orgulho que torna dificultosas a fé e a obediência aos superiores. O argulhoso quereria bastar-se a si mesmo, tal é a confiança que tem na própria inteligência; custa-lhe receber os ensinamentos da fé, ou ao menos quer submetê-los à crítica e interpretação da própria razão. Do mesmo modo é tal a confiança que tem no seu juízo que não gosta de consultar os outros, especialmente os superiores. Daí, imprudências lamentáveis; daí, um aferro tal às próprias idéias, que o leva a condenar em tom categórico as opiniões que não são conformes às suas. É esta uma das causas mais freqüentes dessas divisões que se observam entre cristãos, às vezes até entre autores católicos. Santo Agostinho estigmatizava já no seu tempo essas desgraçadas divisões que destroem a paz, a concórdia e a caridade: «sunt unitatis divisores, inimici pacis, cariratis expertes, vanitate tumentes, placentes sibi et magni in oculis suis». Para Curar este Orgulho do Espírito:
1) É preciso, antes de tudo, submeter-se, com docilidade infantil, aos ensinamentos da fé: não há dúvida que é permitida buscar aquela inteligência dos nossos dogmas, que se obtém por meio de paciente e laboriosa investigação, utilizando os trabalhos dos Santos Padres e Doutores, sobretudo de Santo Agostinho e Santo Tomás; mas é necessário fazê-lo com piedade e sobriedade, como diz o Concílio do Vaticano, inspirando-nos da máxima de Santo Anselmo: fides quaerens intellectum. Então, evita-se esse espírito hipercrítico que atenua e minimiza os nossos dogmas, a pretexto de os explicar: então, submete-se o próprio juízo não somente às verdades de fé senão também às direções pontifícias; mas também então, nas questões livremente discutidas, deixa-se aos outros a liberdade que se reclama para as próprias opiniões, e não se tratam com desdém transcendente as opiniões contrárias. É assim que se consegue a paz dos espíritos.
2) Nas discussões travadas com os outros, é mister buscar, não a satisfação do orgulho e o triunfo das próprias idéias, mas a verdade. É raro que não haja nas opiniões adversas, uma parte de verdade que até então nos havia escapado: escutar as razões dos adversários com atenção e imparcialidade e conceder-Ihes o que há de justo nas suas observações é ainda o melhor meio de nos aproximarmos da verdade, bem como de salvaguardamos as leis da humildade e caridade. Em resumo: é mister, para disciplinar a própria inteligência, estudar o que é mais necessário e fazê-lo com método, constância e espírito sobrenatural, isto é, com desejo de conhecer, amar e praticar a verdade.
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II. Mortificação ou Educação da Vontade
1. Necessidade. A vontade é no homem a faculdade-mestra, a rainha de todas as demais faculdades, a que as governa; é ela que, por ser livre, dá não somente aos seus atos próprios (ou ilícitos), mas ainda aos atos das outras faculdades que ela manda (atos imperados), liberdade, mérito ou demérito. Regular a vontade é, pois, regular o homem todo. Ora a vontade está bem regulada, se é assaz forte para imperar às faculdades inferiores, e assaz dócil para obedecer a Deus: tal é o seu duplo papel. Tanto um como outro é difícil; porque muitas vezes as faculdades inferiores revoltam-se contra a vontade e não se submetem ao seu império, senão quando se sabe aliar a prudência com a firmeza. É que, efetivamente, a vontade não tem poder absoluto sobre as faculdades sensíveis, mas sim uma espécie de poder moral, poder de persuasão, para as conduzir à submissão. Somente, pois, com dificuldade e esforços muitas vezes renovados, é que se chega a submeter à vontade as faculdades sensíveis e as paixões. - E não custa menos submeter perfeitamente a própria vontade à de Deus: nós aspiramos a uma certa autonomia, e, como a vontade divina nos não pode santificar, sem nos exigir sacrifícios, muitas vezes recuamos diante do esforço e preferimos os nossos caprichos à santa vontade de Deus. Por conseguinte, ainda neste ponto é indispensável a mortificação
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2- Meios práticos. Para se conseguir a educação da vontade, é mister torná-la assaz dócil para obedecer a Deus em todas as coisas, e assaz forte para imperar ao corpo e à sensibilidade. Para se atingir este fim, é necessário eliminar os obstáculos e lançar mão dos meios positivos.
A) Os principais obstáculos:
a) Interiores são:
1) a irreflexão: não refletimos antes de praticar uma ação, antes seguimos o impulso do momento, a paixão, a rotina, o capricho; por conseguinte, refletir antes de passar ao ato e perguntar-nos a nós mesmos o que quer Deus de nós;
2) a azáfama febril que, produzindo uma tensão demasiadamente forte e mal dirigida, arruína o corpo e a alma sem utilidade nenhuma, e muitas vezes nos leva a extraviar-nos para o mal; por conseqüência, paz e sossego, moderação até mesmo no bem, para se fazer fogo que dure e não fogo de palha;
3) a negligência, ou a indecisão, a preguiça, a falta de energia moral que paralisa ou atrofia as forças da vontade; logo fortificar as próprias convicções e energias, de maneira que vamos dizer;
4) o medo de fazer fraca figura ou a falta de confiança, que diminui singularmente as nossas forças; pelo contrário, é preciso convencermo-nos que com o auxílio de Deus podemos estar seguros de chegar a bons resultados.
b) A estes obstáculos outros se vêm juntar de fora:
1) O respeito humano, que nos torna escravos dos outros, fazendo-nos recear as suas críticas e zombarias; combate-se com a convicção de que, afinal, o que tem valor é o juízo de Deus, sempre sábio, e não o dos homens, sempre falível;
2) Os maus exemplos, que tanto mais facilmente nos arrastam, quanto mais correspondem a uma propensão da nossa natureza; lembremo-nos então de que o único modelo que é forçoso imitar é Jesus, nosso Mestre e nosso Chefe, e que o cristão deve fazer tudo o oantrário do que faz o mundo.
Quanto aos meios Positivos, consistem em combinar harmonicamente o trabalho da inteligência, da vontade e da graça:
a) À inteligência pertence fornecer aquelas convicções profundas, que serão ao mesmo tempo guia e estímulo para a vontade. Essas convicções são as que são próprias para determinarem a vontade e escolher o que é o conforme à vontade de Deus. Resumem-se nisto: Deus é o meu fim e Jesus é o caminho que devo seguir para o alcançar; devo, pois, fazer tudo por Deus, em união com Jesus Cristo; um só obstáculo se opõe ao meu fim: a pecado; logo devo evitá-lo e, se tiver a infelicidade de o cometer, repará-lo imediatamente; - um só meio é necessário e basta para evitar o pecado: fazer constantemente a vontade de Deus; devo, pois, procurar incessantemente conhecê-Ia e conformar com ela o meu procedimento. E, para a conseguir, repetirme-ei a mim mesmo amiudadas vezes a palavra de São Paulo no momento da sua conversão: “Senhor, que quereis que eu faça, Domine, quid me vis facere? À noite, no exame de consciência, penitenciar-me-ei das mais pequeninas faltas.
b) Estas convicções exercerão poderosa influência sobre a vontade. Esta, de sua parte, deverá operar com decisão, firmeza e constância.
1) É necessária decisão: depois de se haver refletido e orado, segundo a importância da ação que se vai praticar, importa decidir-se imediatamente, sem embargo das hesitações que poderiam persistir: a vida é demasiadamente curta para se perder tempo considerável a deliberar sem fim. Toma-se, pois, decisão pelo que parece mais conforme à vontade divina, e Deus, que vê as nossas disposições, abençoará a ação.
2) Esta decisão deve ser firme. Não basta dizer: eu bem quisera, eu desejo: tudo isso não passa de veleidade. É mister dizer: quero e quero, custe o que custar; e pôr-se imediatamente à obra, sem esperar pelo dia de amanhã, sem aguardar as grandes ocasiões: a firmeza nas pequenas ações é que assegura a fidelidade nas grandes.
3) Contudo esta firmeza não é violência: é tranqüila, porque quer durar; para a tornar constante, renovar-se-ão muitas vezes os esforços, sem jamais se descoroçoar pelos reveses que sobrevenham: ninguém é vencido, senão quando abandona a luta. A despeito de alguns desfalecimentos e até mesmo de algumas feridas, deve-se o homem considerar como vitorioso, porque apoiado em Deus é realmente invencível. E ainda quando houvesse a desgraça de sucumbir um mo mento, é levantar-se imediatamente: com o divino médico das almas não há ferida, não há doença incurável.
c) É, pois, em última análise, com a graça de Deus que o homem deve contar; se a pedirmos com humildade e confiança, não nos será jamais recusada, e com ela somos invencíveis. Devemos, pois, renovar amiúde as nossas convicções sobre a absoluta necessidade da graça, particularmente ao começarmos qualquer ação importante; pedi-la com instância, em união com Nosso Senhor Jesus Cristo, para termos maior segurança de a alcançar; lembrar-nos de que Jesus é não somente o nosso modelo, mas ainda o nosso colaborador, e apoiar-nos com confiança Nele, seguros de que Nele podemos empreender e realizar tudo na ordem da salvação: «Omnia possum in eo qui me confortat». Então, a nossa vontade será forte, porque participará da força da mesmo Deus: Dominus fortitudo mea; será livre: porque a verdadeira liberdade não consiste em nos entregarmos às paixões, que nos tiranizam, senão em assegurar o triunfo da razão e da vontade sobre o instinto e a sensualidade.
Conclusão. Assim se realizará o objetivo que havíamos assinado à mortificação: submeter os nossos sentidos e faculdades inferiores à vontade, e esta a Deus.
Segundo, TANQUEREY, Adolph: A Vida Espiritual Explicada e Comentada. Anápolis: Aliança Missionária Eucarística Mariana, 2007. pgs. 403-434).
O corpo chagado de Jesus é um autêntico retábulo de dores... Por contraste, vêm à memória tanto comodismo, tanto capricho, tanta negligência, tanta mesquinhez... E essa falsa compaixão com que trato a minha carne. Senhor!, pela Tua Paixão e pela Tua Cruz, dá-me forças para viver a mortificação dos sentidos e arrancar tudo o que me afaste de Ti. (Via Sacra)
Sua natureza, Sua Necessidade e a Sua Prática.
Natureza -> Seus diversos Nomes e sua Definição.
Necessidade -> Para a Salvação e para a Perfeição.
Prática -> Princípios gerais - Mortificação dos sentidos exteriores -Mortificação dos sentidos interiores - Mortificação das paixões e Mortificação das faculdades superiores.
I. Natureza da Mortificação
A - Expressões bíblicas, para designar a mortificação. Encontramos sete expressões principais nos Livros Santos, para designar a mortificação sob os seus diversos aspectos.
1 - A palavra renúncia: «qui non renuntiat omnibus quae possidet non potest meus esse discipulus» apresenta-nos a mortificação como um ato de desprendimento dos bens exteriores, para seguirmos a Cristo. Assim fizeram os Apóstolos: «relictis omnibus, secuti sunt eum»
2 - É também uma abnegação ou renúncia a si mesmo: «Si quis vuli post me venire, abneget semetipsum» E na verdade, o mais terrível dos nossos inimigos é o amor próprio desordenado; eis o motivo por que é forçoso desapegar-nos de nós mesmos.
3 - Mas a mortificação tem um lado positivo: é um ato que fere e atrofia as más tendências da natureza: «Mortifica te ergo membra vestra .. Si autem Spiritu facta carnis mortíficaveritis, vivetis »
4 - Mais ainda é uma crucificação da carne e das suas concupiscências, pela qual cravamos, por assim dizer, as nossas faculdades à lei evangélica aplicando-as à oração, ao trabalho: «Qui sunt Christ, carnem suam crucifixerunt cum vitiis et concupiscentiis»
5 - Esta crucifixão, quando persevera, produz uma espécie de morte e de en terramento, pelo qual parecemos morrer completamente a nós mesmos e sepultar-nos com Jesus Cristo, para vivermos com Ele uma vida nova «Mortui enim estis vos et vita vestra est abscondita cum Cristo in Deo … Consepulti enim sumus cum illo per baptismum in mortem» .
6 - Para exprimir esta morte espiritual. São Paulo serve-se doutra expressão: como, depois do batismo, há em nós dois homens, o homem velho que fica, ou a tríplice concupiscência, e o homem novo ou o homem regenerado, declara o Apóstolo que é nosso dever «despojar-nos do homem velho, para nos revestirmos do novo: expoliantes vos veterem hominem ... et induentes novum» .
7 - E, como isto se não faz sem combater, declara ainda que a vida é combate «bonum certamen celta vi», que os cristãos são lutadores ou atletas que castigam o seu corpo e reduzem a servidão.
De todas estras expressões e outras análogas, resulta que a mortificação compreende um duplo elemento: um negativo, o desprendimento, a renúncia, o despojamento; e outro positivo, a luta contra as más tendências, o esforço para as mortificar ou atrofiar, a crucificação, a morte da carne, do homem velho e das concupiscências, a fim de vivermos da vida de Cristo.
B- Expressões modernas. Hoje vai-se preferindo o uso de expressões mitigadas, que indicam o fimque se pretende atingir, antes que o esforço que para isso se tem de empregar. Diz-se que é mister reformar-se a si mesmo, governar-se a si mesmo, fazer a educação da vontade, orientar a sua alma para Deus. Estas expressões são exatas, contanto que se saiba mostrar que ninguém pode reformar-se e governar-se a si mesmo, sem combater e mortificar as más tendências que em nós existem; que não se faz a educação da vontade, senão mortificando, disciplinando as faculdades inferiores, e que não há possibilidade de alguém se orientar para Deus se não desapegando-se das criaturas e despojando-se dos próprios vícios. Por outros termos, é necessário saber, como faz a Sagrada Escritura, reunir os dois aspectos da mortificação, mostrar o fim, para consolar, mas não dissimular o esforço necessário para o atingir.
C - Definição.Pode-se, pois, definir a mortificação: a luta contra as más inclinações, para as submeter à vontade, e esta a Deus. É menos virtude que um complexo de virtudes, o primeiro grau de todas as virtudes, que consiste em vencer os obstáculos, no intuito de restabelecer o equilíbrio das faculdades, a sua ordem hierárquica. Assim se vê mehor que a mortificação não é um fim, senão um meio; o homem não se mortifica senão para viver uma vida superior, não se despoja dos bens exteriores senão para melhor conseguir os bens espirituais, não se renuncia a si mesmo senão para possuir a Deus, não luta senão para gozar .,. paz, não morre a si mesmo senão para viver da vida de Cristo, da vida de Deus. A união com Deus, é, pois, o fim da motificação. Assim, melhor se compreende a sua necessidade.
II -Necessidade da Mortificação. Esta necessidade pode-se estudar sob duplo aspecto: a Salvação e a Perfeição.
A -Necessidade da mortificação para a Salvação.Há mortificações necessárias para a salvação, neste sentido que, se não se fazem, há perigo de cair no pecado mortal:
1 - Nosso Senhor Jesus Cristo fala disto clarissimamente, a propósito das faltas contra a castidade: «Todo aquele que olhar para uma mulher com concupiscência, ad concupiscendam eam, já cometeu adulério com ela em seu coração». Há, pois, olhares gravemente pecaminosos, os que são inspirados por maus desejos; e a mortificação de tais olhares impõe-se sob pena de pecado mortal. É afinal, o que Nosso Senhor acrescenta com estas enérgicas palavras: «Se o teu olho direito te escandaliza, arranca-o, e lança-o para longe de ti; porque melhor te é que pereça um só dos teus membros do que ser todo o teu corpo lançado na geena». Não se trata aqui de vazar os próprios olhos, senão de arrancar a vista desses objetos que são cauda de escândalo.
_ São Paulo dá-nos a razão destas graves prescrições: «Se viverdes segundo a carne, morrereis; mas se, pelo Espírito, fizerdes morrer as obras da carne, vivereis: si enim secundum carnem vixeritis, moriemini, si autem Spiritu facta carnis mortificaveritis, vive tis»Como sabemos a tríplice concupiscência que permanece em nós, excitada pelo mundo e pelo demônio, leva-nos muitas vezes ao mal e põe-nos a salvação em perigo, se não temos cuidado de a mortificar. Donde resulta a necessidade absoluta de combater incessantemente as tendências pervesas que em nós existem, de evitar as ocasiões próximas de pecado, isto é, esses objetos ou pessoas que, dada a nossa experiência passada, constituem para nós um perigo sério e provável de pecado, e de renunciar por isso mesmo a muitos prazeres a que a natureza nos arrasta. Há, pois, mortificações necessárias, sem as quais viríamos a cair no pecado mortal.
2 - Outras há que a Igreja prescreve, para determinar concretamente a obrigação geral, que temos de nos mortificar, tantas vezes inculcada no Evangelho: tal é a abstinência das sextas-feiras, o jejum da Quaresma, das Têmporas e Vigílias.. Estas leis obrigam sob pena de pecado grave aos que não estão legitimamente escusados ou dispensados. E neste ponto queremos fazer uma observação que não deixa de ter importância: há pessoas que, por boas razões, estão dispensadas destas leis; mas nem por isso se julguem dispensadas da lei geral da mortificação, que, por conseguinte, devem praticar por outra forma qualquer. Sem o que, não tardariam a sentir as revoltas da carne.
3 -Além destas mortificações prescritas pela lei divina e eclesiástica há outras que, com o parecer do próprio diretor, cada qual deve tomar em certas circunstâncias particulares, quando as tentações se tornem mais importunas. Escolher-se-ão entre as que depois indicaremos.
B - Necessidade da Mortificação para a Perfeição.Esta necessidade promana da natureza da perfeição, que, consiste no amor de Deus até o sacrifício e imolação de nós mesmos, de tal sorte que, segundo a Imitação, a medida que nosso progresso espiritual depende da violência que a nós mesmos nos fazemos: tantum proficies quantum tibi ipsi vim intuleris . Bastará, recordar sumariamente alguns motivos que poderão influir sobre a nossa vontade, para a ajudar a cumprir este dever. Esses motivos tiram-se da parte de Deus, de Jesus Cristo, e da nossa santificação pessoal .
1. Da parte de Deus
A - O fim da mortificação, como dissemos, é unir-nos com Deus. Ora, é impossível conseguir essa união, sem nos desprendermos do amor desordenado das criaturas. Como diz com razão São João da Cruz, «a alma apegada à criatura torna-se semelhante a ela; quanto mais cresce a afeição, tanto mais se afirma entre a identidade, já que o amor estabelece uma relação de igualdade entre o que ama e o que é amado ... Portanto, quem ama uma criatura, abate-se ao seu nível, e até mais abaixo, porque o amor não se contenta de nivelar, senão que estabelece uma certa escravidão. É por este motivo que uma alma, escrava dum objeto fora de Deus, se torna incapaz de pura união e transformação em Deus, porque a baixeza da criatura é mais distante da soberania do Criador que as trevas da luz».Ora a alma, que se não mortifica, não tarda em apegar-se desordenadamente às criaturas. Após a queda original, sente-se atraída para elas, cativada pelos seus encantos, e, em lugar de se servir delas como de degraus para subir ao Criador, compraz-se nelas, considerando-as como um fim. Para quebrar este encanto, é absolutamente necessário desapegar-se de tudo o que não é Deus, ou ao menos, de tudo que não é encarado como meio de subir para Deus.
Eis o motivo por que M. Olier, comparando a condição dos cristãos com a de Adão inocente, diz que há uma grande diferença entre ambos; « Adão buscava a Deus, servia-o e adorava-o nas sua criaturas; os cristãos, pelo contrário, são obrigados a buscar a Deus pela fé, a servi-lo, a adorá-lo retirado em si mesmo e na sua santidade, separado de toda a criatura». É nisto que consiste a graça do Batismo
B - No dia do nosso Batismo firmou-se entre Deus e nós um verdadeiro contrato:
a) Do seu lado, purificou-nos Deus da mácula original e adotou-nos por filhos, comunicou-nos uma participação da Sua vida e empenhou-se a dar-nos todas as graças necessárias para a conservar e acrescentar. E bem sabemos nós com que liberalidade cumpriu Deus as suas promessas.
b) Do nosso lado, comprometemo-nos a viver como verdadeiros filhos de Deus, a aproximar-nos da perfeição do nosso Pai Celeste, cultivando essa vida sobrenatural.Ora, tudo isso é impossível sem prática da mortificação. Porquanto, duma parte, o Espírito Santo, que nos foi dado no Batismo, “os leva a buscar o desprezo, a pobreza, os sofrimentos, e por outra, a nossa carne deseja a honra, o prazer, as riquezas» Há, pois, em nós um conflito, uma luta incessante; nem podemos ser fiéis a Deus, sem renunciarmos amor desordenado da honra, do prazer e das riquezas. É por isso que o sacerdote, ao administrar-nos o Batismo, traça duas cruzes sobre nós, uma sobre o coração, para imprimir em nós o amor da cruz, outra sobre os ombros, para nos dar a força de a levar. Faltaríamos, pois, às promessas do nosso batismo, se não carregássemos com a nossa cruz, combatendo o desejo da honra com a humildade, o amor do prazer com a mortificação, a sede das riquezas com a pobreza.
2 – Da parte de Jesus Cristo
A) Somos-lhe incorporados pelo Batismo, e, como tais, devemos receber D’ele o movimento e as inspirações, e, por conseguinte, conformar-nos com Ele. Ora, como diz a Imitação, a sua vida inteira não foi senão longo martírio: «Tota vita Christi crux fuit et martyrium». A nossa, por conseguinte, não pode ser vida de prazer e honras, senão vida mortificada. É afinal o que nos diz claramente o nosso divino Chefe: «Si quis vult post me venire, abneget semetipsum, et tollat crucem suam quotidie et sequatur me”. Pois, se há alguém que deva seguir a Jesus, é seguramente aquele que tende à perfeição. Ora, como seguir a Jesus que, desde a entrada no mundo abraçou a cruz, que toda a sua vida suspirou pelo sofrimento e humilhação, que desposou a pobreza no presépio e a teve por companheira até o Calvário, se amamos o prazer, as honras, as riquezas, se não levamos a nossa cruz de cada dia, a que o próprio Deus nos escolhe e envia? É uma vergonha, exclama São Bernardo, que debaixo duma cabeça coroada de espinhos, sejamos membros delicados, com temor dos menores sofrimentos: «pudeat sub spinato capite membrum fieri delicatum». Para sermos, pois, conformes a Jesus Cristo e nos aproximarmos da sua perfeição, é necessário levar a nossa cruz com Ele.
B) Se aspiramos ao apostolado, aí temos novo motivo para crucificar a carne. Foi pela cruz que Jesus Cristo salvou o mundo; será, pois, pela cruz que havemos de colaborar com Ele na salvação de nossos irmãos, e o nosso zelo será tanto mais fecundo quanto maior for a parte que tivermos nos sofrimentos do Salvador. Era este, seguramente, o motivo que animava São Paulo, quando completava em sua carne a paixão do divino Mestre, a fim de obter graças para a Igreja. É isto que sustentou no passado e sustenta ainda no presente tantas almas que se oferecem com vítimas, para ser Deus glorificado e as almas salvas. É áspero, sem dúvida, o sofrimento, mas, ao contemplarmos Jesus caminhando diante de nós com a cruz aos ombros, para nos salvar a nós e aos nossos irmãos, ao vermos a Sua agonia, a Sua condenação injustíssima, a flagelação, a coroação de espinhos, a crucifixão, ao ouvirmos as mofas, os insultos, as calúnias, que Ele aceita em silêncio, como ousaremos queixar-nos? Ainda nao chegamos a derramar o sangue: «nondum usque ad guinem restitistis». E se estimamos no seu justo valor a nossa alma e a de nossos irmãos, não valerá a pena suportar alguns sofrimentos passageiros por uma glória que jamais findará, e para cooperar com Cristo Senhor Nosso na salvação dessas almas, pelas quais Ele derramou até à última gota, o Seu sangue? Estes motivos, por mais elevados que sejam, são compreendidos por algumas almas generosas, logo desde o começo da sua conversão; propor-lhos, é adiantar a obra da sua purificação e santificação.
3 - Da parte da nossa Santificação
A) Necessitamos de assegurar a perseverança, ora, a mortificação é, sem dúvida alguma, um dos melhores meios de preservação do pecado. O que nos faz sucumbir à tentação é o amor do prazer ou o horror da pena, da luta, horror difficultatis, labor certaminis. Ora, a mortificação combate esta dupla tendência, que em realidade é uma só.
Desquitando-nos de alguns prazeres legítimos, a mortificação arma-nos a vontade contra os prazeres ilícitos, tornando-nos fácil a vitória sobre a sensualidade e o amor próprio, «agendo contra suam propriam sensualitatem et contra suum amorem carnalem et mundanum», com diz com razão Santo Inácio. Se, pelo contrário, capitulamos diante do prazer, concedendo-nos todas as alegrias permitidas, como saberemos resistir no momento em que a sensualidade, ávida de novos gozos, perigosos ou ilícitos se sente como arrastada pelo hábito de ceder às suas exigências? A ladeira é tão escorregadia, em matéria de sensualidade sobretudo é tal a fascinacão da vertigem, que nao há nada mais fácil que resvalar ao abismo. Até mesmo tratando-se de orgulho, o declive é mais rápido que se Imagina: mente-se, por exemplo, em matéria leve, para dar uma desculpa e evitar assim uma humilhação; e depois, no sagrado tribunal, corre-se perigo de faltar à sinceridade por medo duma confissão humilhante. A própria segurança exige, pois, a luta contra o amor próprio tanto como contra a sensualidade e a cobiça.
B) Não basta evitar o pecado é mister avançar na perfeição. Ora, qual é ainda aqui o grandíssimo obstáculo, senão o amor do prazer e o horror da cruz? Quantos desejariam ser melhores, tender à santidade, se não fosse o temor do esforço necessário para adiantar e das provações que Deus envia aos seus melhores amigos? É necessário, pois, recordar-lhes o que São Paulo tantas vezes repetia aos primeiros cristãos, a saber, que a vida é um combate, que devemos ter vergonha de ser menos corajosos que os que lutam por uma recompensa terrestre, e, para se prepararem para a vitória, se privam de muitos prazeres lícitos e se impõem duros e penosos exercícios, e tudo isso por uma coroa perecedoura , enquanto a coroa, que nos está prometida, é imortal, «et íllí quidem ut corruptibilem coronam a ccipiant, nos autem íncorruptam» - Temos medo do sofrimento; mas já sabemos das terríveis penas do Purgatório que teremos de padecer durante longos anos, se quisermos viver na imortificação e conceder-nos todos os prazeres que nos lisonjeiam? Quanto mais prudentes não são os homens do século?! Quantos se não impõem ásperos trabalhos, e quantas vezes se não sujeitam a passos humilhantes, para ganharem um pouco de dinheiro e assegurarem uma aposentação honrosa! E nós não havíamos de nos dar à mortificação, para assegurar uma aposentação eterna na cidade do céu? É isto razoável?
É, pois, necessário convencermo-nos de que não há perfeição nem virtude possível sem mortificação. Como ser casto, sem mortificar essa sensualidade que nos inclina tão fortemente aos prazeres perigosos e perversos. Como guardar a temperança, senão reprimindo a gula? Como praticar a pobreza ou até mesmo a justiça, sem combater a cobiça? Como ser humilde, manso e caritativo, sem dominar essas paixões de orgulho, de cólera, de inveja e de ciúme que dormitam no fundo de todo o coração humano? Não há uma só virtude que, no estado de natureza decaída, se possa praticar muito tempo sem esforço, sem luta e, por conseguinte, sem mortificação, Pode-se, pois, dizer com M. Tronson, que «assim como a imortificação é a origem dos vícios e a causa de todos os males, assim a mortificação é o fundamento das virtudes e a fonte de todos os bens».
C) Pode-se até acrescentar que a mortificação, apesar de todas as privações e sofrimentos que impõe, é, ainda mesmo neste mundo, a fonte dos maiores bens, e que, afinal, os cristãos mortificados são em geral mais felizes que os mundanos que se entregam a todos os prazeres. É o que ensina o próprio Cristo Senhor Nosso, ao dizer-nos que os que deixam tudo, para o seguirem, recebem em retorno cento por um ainda mesmo nesta vida: «Qui relíquerít domum vel fratres ... centuplum accipiet, et vitam aeternam possídebit» São Paulo não se exprime diversamente, quando, depois de haver falado da modéstia, isto é, da moderação em todas as coisas, acrescenta que quem a pratica goza daquela paz verdadeira que supera toda a consolação: «pax Dei, quae exsuperat omnem sensum, custodiat corda vestra et intellígentías vestras». E não é ele mesmo um vivo exemplo disto? Oh! Quanto não teve ele que sofrer! que provações terríveis, porque houve de passar na pregação do Evangelho, bem como na luta contra si mesmo, descreve-no-las ele longamente; mas acrescenta que abunda e superabunda de alegria no meio das suas tribulações: superabundo gaudio in omni tribulatione nostra .
O mesmo se diga de todos os demais Santos: é certo que houveram de passar igualmente por longas e dolorosas tribulações: mas os mártires, no meio das suas torturas, diziam que jamais haviam estado em semelhante festim, ”Nunquam tam iucunde epulati sumus». Ao ler as vidas dos Santos, duas coisas nos espantam; as terríveis provações que padeceram, as mortificações que livremente se impuseram a si mesmos; e, por outro lado, a paciência, a alegria, a serenidade no meio destes sofrimentos. E assim, chegam a amar a cruz, a cessar de a temer, a suspirar até por ela, a contar como perdidos os dias em que não tiveram quase nada que sofrer. É este um fenômeno psicológico que assombra os mundanos, mas que consola as almas de boa vontade. É certo que se não pode exigir a principiantes este amor da cruz; pode-se, porém, alegando os exemplos dos Santos, fazer - lhes compreender que o amor de Deus e das almas adoça consideravelmente o sofrímento e a mortificação, e que, se eles se resolverem a entrar generosamente na prática dos pequenos sacrifícios, que estão ao seu alcance chegarão um dia também a amar, a desejar a cruz, e a encontrar nela verdadeiras consolações espirituais. É precisamente o que observa o autor da Imitação de Cristo, num texto que resume perfeitamente as utilidades da mortificação: «In cruce salus, in cruce vita, in cruce protectio ab hostibus, in cruce infusio supernae suavitatis, in cruce robur mentis, in cruce gaudium spiritus, in cruce virtutis summa, in cruce perfectio sanctitatis». O amor da cruz é efetivamente o amor de Deus levado até à imolação; ora este amor, como já dissemos, é indubitavelmente o compêndio de todas as virtudes, a própria essência da perfeição, e por isso mesmo o escudo mais poderoso contra os nossos inimigos espirituais, uma fonte de força e consolação, o melhor meio de aumentar em nós a vida espiritual e assegurar a salvação.
Prática da Mortificação
Princípios.
1 - A mortificação deve abraçar o homem inteiro, corpo e alma; porque o homem inteiro, se não está bem disciplinado, é que é uma ocasião de pecado. É certo que, falando com rígor, só a vontade é que peca; mas a vontade tem por cúmplices e instrumentos o corpo com os seus sentidos exteriores e a alma com todas as suas faculdades. É, por conseguinte, o homem todo que deve ser disciplinado ou mortificado.
2 – A mortificação combate o prazer. É certo que o prazer em si não é um mal; é até um bem, quando se subordina ao fim para que Deus o instituiu.- Ora Deus quis vincular certo prazer ao desempenho do dever, a fim de facilitar o seu cumprimento. Assim, por exemplo, encontramos certo gosto no comer e beber, no trabalho, e noutros deveres deste gênero. Donde se deduz que, no plano divino, o prazer não é um fim senão um meio. Gostar o prazer, com o fim de melhor cumprir o dever, não é pois, proibido; é a ordem estabelecida por Deus. Mas querer o prazer por si mesmo, como fim, sem relacão alguma com o dever, é pelo menos arriscado, pois se corre perigo de escorregar dos prazeres lícitos aos ilícitos. Gozar o parzer, excluindo o dever, é pecado mais ou menos grave, porque é a violação da ordem estabelecida por Deus. A mortificação consistirá; pois, em nos privarmos dos prazeres maus, contrários à ordem providencial, ou à lei de Deus ou da Igreja; em renunciarmos até os prazeres perigosos, para não nos expormos ao pecado; e ainda em nos abstermos de alguns prazeres lícitos, para melhor assegurarmos o império da vontade sobre a sensiblidade
Neste mesmo intuíto, não somente nos privaremos de alguns prazeres, mas até nos infligiremos algumas mortificações positivas; porque é um fato da experiência que não há nada mais eficaz para amortecer a inclinação ao prazer do que impor-se algum trabalho ou sofrimento de super-rogação.
3 – Mas a mortificação deve-se praticar com prudência ou discrição: deve ser proporcionada às forças físicas e morais de cada um e ao cumprimento dos deveres de estado.
A) É mister poupar as forças físicas, porquanto, segundo São Francisco de Sales, «estamos expostos a grandes tentações em dois estados, a saber, quando o corpo está demasiadamente nutrido, ou excessivaente abatido»; é que, efetivamente, neste último caso facilmente se cai em neurastenia, que obriga depois a cuidados perigosos.
B) É preciso poupar as forças morais, isto é, não se impor ao príncípio excessivas prívações que não se poderão continuar por muito tempo e que, no momento em que se deixam, podem conduzir ao relaxamento.
C) Importa sobretudo que estejam em harmonia com os deveres de estado, pois que estes, por obrigatórios, devem prevalecer às obras de super-rogação. Assim, por exemplo, seria mau para uma mãe de família praticar austeridade que a impedissem de cumprir os seus deveres para com o marido e os filhos.
4 - Há uma certa hierarquia nas mortificações: as interiores valem, evidentemente, mais que as exteriores, por combaterem mais diretamente a raiz do mal. Mas importa não esquecer que estas facilitam muito a prática daquelas; quem quisesse disciplinar a imaginação, sem mortificar os olhos, não chegaria a grandes resultados, precisamente porque estes fornecem àquela as imagens sensíveis que lhe dão pasto. Foi erro dos modernizantes mofar das austeridades dos séculos cristãos. De fato, os Santos de todas as épocas, tanto os que foram beatificados ou canonizados nestes últimos tempos como os outros, castigaram asperamente o próprio corpo e os sentidos exteriores, bem persuadidos que, no estado de natureza decaída, é o homem todo que deve ser mortificado, para pertencer totalmente a Deus.
Vamos, pois, percorrer sucessivamente todos os gêneros de mortificação, começando pelos exteriores, para chegar aos interiores: é esta a ordem lógica; na prática, porém, é mister saber combinar e dosar uns e outros.
I. Da Mortificação do Corpo e dos Sentidos Externos
1 - Sua razão de ser:
a) Nosso Senhor Jesus Cristo havia recomendado aos seus discípulos a prática moderada do jejum e abstinência, a mortificação da vista e do tato. São Paulo compreendia tão bem a necessidade de mortificar o corpo, que o castigava severamente, para escapar ao pecado e à reprovação; «Castigo corpus meum et in servi tu tem redigo, ne forte, cum aliis praedicaverim, ipse reprobus efficiar». A própria Igreja interveio para prescrever aos fiéis certos dias de jejum e abstinência.
b) Qual é a razão de tudo isto? É indubitável que o corpo, bem disciplinado, é um servidor útil, necessário até, cujas forças importa poupar, para as colocar ao serviço da alma. No estado, porém, de natureza decaída, o corpo busca gozos sensuais, sem fazer caso do que é permitido ou vedado; tem até inclinação especial para os prazeres ilícitos e muitas vezes se revolta contra as faculdades superiores que lhos querem interdizer. Inimigo perigosíssimo, porque nos acompanha por toda a parte, à mesa, no leito, nas jornadas, e muitas vezes até encontra cúmplices, dispostos a excitar-lhe a sensualidade e luxúria. É que, na verdade, os seus sentidos são outras tantas portas abertas, pelas quais sorrateiramente se insinua o sutil veneno do prazer vedado. É, pois, absolutamente necessário velar sobre ele, dominá-lo, reduzi-lo à servidão; senão, ver-nos-emos atraiçoados por ele.
2 - Modéstia do Corpo.
Para mortificar o corpo, comecemos por observar perfeitamente as regras da modéstia e urbanidade; nisto se encontra abundante matéria de mortificação. O princípio, que nos deve servir de regra, é o de São Paulo: «Não sabeis que os vossos corpos são membros de Santo que reside em vós? Nescitis quoniam CaIpora vestra membra sunt Christi? ... Membra vestra templum sunt Spiritus Sancti» .
A) É mister, pois, respeitar o nosso corpo como um templo santo, como um membro de Cristo. Nada desses trajes mais ou menos indecentes que não são feitos senão para provocar a curiosidade e a volúpia. Cada qual traga o vestido reclamado pela sua condição, simples e modesto, mas sempre asseado e decente. Nada mais ponderado que os conselhos de São Francisco de Sales a este propósito «Sede asseada, Filotea, e nada haja em vós destoante e mal posto ... mas fugi o mais possível das vaidades e afetações, das curiosidades e loucuras. Propendei sempre, quando for possível, para a parte da singeleza e modéstia, que sem dúvida é o maior adorno da formosura e a melhor desculpa da fealdade ... As mulheres vãs fazem duvidar da sua castidade; pelo menos, se a têm, não transparece entre tantas superfluidades e bagatelas» ... São Luís diz numa palavra, «que cada qual se deve vestir conforme seu estado, de sorte que as pessoas sisudas e os homens de bem não possam dizer: é de mais; nem os jovens: é de menos».Quanto aos religiosos e religiosas, bem como aos eclesiásticos, todos estes têm sobre a forma e matéria dos vestidos regras a que se devem conformar. É inútil dizer que o mundanismo e afetação estariam completamente deslocados entre eles e não poderiam deixar de escandalizar os próprios mundanos.
B) A compostura do porte exterior é igualmente uma excelente mortificação ao alcance de todos. Evitar com cuidado as posições moles e efeminadas, conservar o corpo direito sem violência e afetação, nem curvado, nem inclinado para um lado ou outro; não mudar com demasiada frequência de posição; não cruzar nem os pés nem as pernas; não se apoiar indolentemente na cadeira ou sobre o genuflexório; evitar os movimentos bruscos e os gestos desordenados: eis aqui, entre centenas de outros, meios de nos mortificarmos sem perigo para a saúde, sem atrair as atenções, os quais nos dão sobre o próprio corpo grandíssimo domínio.
C) Há outras mortificações positivas que os penitentes generosos se comprazem em se impor a si mesmos, para macerarem o corpo, acalmarem os seus ardores intempestivos e estimularem o desejo da piedade: os mais comuns são os pequenos cilícios de ferro com que se apertam os braços, as cadeias com que se cingem os rins, as cinturas ou escapulários de crina, e alguns bons golpes de disciplina, quando é possível torná-la, sem atrair atenções. (Voltar às práticas de mortificação corporal é um dos meios mais eficazes para recuperar a alegria e, com ela, a fervor; “Voltemos às nossas mortificações corporais, maceremos a nossa carne, façamos correr algumas gotas do nosso sangue, e seremos felizes como nunca. Se o espírito das Santas respira a alegria. se os monges e os religiosas são criaturas animadas dessa franca jovialidade que o mundo não sabe explicar, é unicamente porque os seus corpos, como o de S. Paulo, são castigados e reduzidos à servidão com inflexível severidade». -FABER, Saint Sacrement, t. 1, p. 228,229). Em tudo isto, é mister consultar com todo o cuidado o parecer do próprio diretor, evitar tudo o que porventura cheirasse a singularidade ou lisonjeasse a vaidade, sem falar do que pudesse ser contrário à higiene ou à limpeza; o diretor não permitirá estas coisas senão com muita discrição, e somente por algum tempo, para experiência; caso note inconveniente de qualquer gênero, é suprimi-las imediatamente.
3 - Modéstia dos Olhos.
A) Há olhares gravemente culpados, que ofendem não somente o pudor, mas até a castidade em si mesma e que, por conseguinte, é forçoso evitar. Outros há que são perigosos, por exemplo, fixar a vista sem razão em pessoas ou objetos que naturalmente hão de suscitar tentações. Assim, a Sagrada Escritura nos adverte que não detenhamos o olhar numa donzela, não seja caso que a sua formosura seja para nós objeto de escãndalo: «Virginem ne conspicias, ne forte scandalizeris in decore illius». E hoje, então, que a licença das vitrinas, a imodéstia do trajar e a imoralidade das exibições teatrais e de certos salões criam tantos perigos, que recato não é preciso para evitar o pecado?
B) É por isso que o cristão sincero, que quer salvar a sua alma, custe o que custar, vai mais longe; para estar seguro de não sucumbir à sensualidade, mortifica a curiosidade dos olhos, evitando, por exemplo, olhar pela janela, para ver quem passa, conservando os olhos modestamente baixos, sem afetação, nas viagens ou passeios. Pelo contrário, compraz-se em os descansar sobre algum objeto, imagem piedosa, campanário, cruz, estátua, para se excitar ao amor de Deus e dos Santos.
4 - Mortificação do Ouvido e da Língua.
A) Esta mortificação exige que não se diga nem ouça nada contrário à caridade, à pureza, à humildade e às demais virtudes cristãs; porquanto, como diz São Paulo, as conversas más corrompem os bons costumes, «corrumpunt mores bonos colloquia prava». E quantas almas, na verdade, não têm sido pervertidas por terem escutado conversas desonestas ou contrárias à caridade?! As palavras lúbricas excitam a curiosidade mórbida, revoltam as paixões, inflamam desejos e provocam ao pecado. As palavras pouco caritativas suscitam divisões até nas famílias, desconfianças, inimizades, rancores. É necessário, pois, velar sobre as mínimas palavras, para evitar tais escãndalos, e saber fechar os ouvidos a tudo quanto possa pertubar a pureza, a caridade e a paz.
B) Mas, para melhor conseguirmos este fim mortificaremos, de vez em quando, a curiosidade, evitando fazer perguntas acerca do que a possa lisonjear, ou reprimindo esse prurido de falar que arrasta a conversas não somente inúteis, mas até perigosas: «in multiloquio non deerit peccatum»
C) E, como os meios negativos não bastam, havemos de ter cuidado de dirigir a conversa para assuntos não somente inofensivos, mas até bons, honestos e, de vez em quando, edificantes, sem contudo nos tornarmos pesados aos outros com observações demasiado sérias que não venham naturalmente.
5 - Mortificação dos Outros Sentidos.
O que dissemos da vista, do ouvido e da língua, aplica-se aos outros sentidos; voltaremos a tratar do gosto, ao falar da gula, e do tato a propósito da castidade. Quanto ao olfato basta dizer que o uso imoderado de perfumes não é muitas vezes mais que um pretexto para satisfazer a sensualidade e talvez para excitar a luxúria. Um cristão sério não usa de perfumes senão com muita moderação, por motivos de grande utilidade; os religiosos e eclesiásticos devem ter como norma não usar nunca deles.
II - Da Mortificação dos Sentidos Internos
Os dois sentidos internos, que é preciso mortificar, são a imaginação e a memória, que geralmente atuam de harmonia, pois que o trabalho da memória é acompanhado de imagens sensíveis.
1 - Princípio.
São duas faculdades preciosas, que não somente fornecem à inteligência os materiais de que esta necessita para trabalhar, senão que lhe permitem expor a verdade com imagens e fatos que a tornam mais perceptível, mais viva e, por isso mesmo, mais interessante: um resumo pálido e frio não teria encantos para o comum dos mortais. Não se trata, pois, de atrofiar estas faculdades, senão de as disciplinar e subordinar a sua atividade ao império da razão e da vontade; aliás, deixadas a si mesmas, povoam a alma dum sem-número de lembranças e imagens que a dissipam, desperdiçam as suas energias, fazem-lhe perder tempo precioso na oração e no trabalho, e criam mil tentações contra a pureza, caridade, humildade e demais virtudes. É, pois, necessário discipliná-las e pô-las ao serviço das faculdades superiores.
2 - Regras que se devem seguir.
A) Para reprimir os extravios da memória e da imaginação, aplicar-nos-emos, antes de mais nada, a afugentar implacavelmente, desde o princípio, isto é, logo que a consciência nos adverte, as imagens ou lembranças perigosas que, recordando-nos um passado escabroso, ou transportando-nos no meio das seduções do presente ou do futuro, seriam para nós uma fonte de tentações. Mas, como há muitas vezes uma espécie de determinismo psicológico, que nos faz passar por devaneios fúteis aos perigos, premunir-nos-emos contra esta engrenagem, mortificando os pensamentos inúteis, que já nos fazem perder tempo precioso, e preparam o caminho a outros mais perigosos ainda: a mortificação dos pensamentos inúteis, dizem os Santos, é a morte dos pensamentos maus.
B) Para melhor se vir a este resultado, o meio positivo mais conducente, é aplicar inteiramente a alma toda ao dever presente, aos nossos trabalhos, estudos e ocupações habituais. É, afinal, o melhar meio de conseguir fazer bem o que se faz, concentrando toda a atividade na ação presente: age quod agis. - Lembrem-se os jovens que, para progredirem nos estudos, como nos demais deveres do próprio estado, é mister dar mais lugar ao trabalho da inteligência e da reflexão, e menos às faculdades sensíveis: deste modo assegurarão o futuro e evitarão os devaneios perigosos.
C) É utilíssimo, enfim, servir-se da imaginação e da memória, para alimentar a piedade, buscando nos Livros Santos, nas orações litúrgicas e nos autores espirituais os mais belos textos, as mais formasas comparações e imagens; utilizar a imaginação para andar na presença de Deus, e representar-se por miúdo os mistérios de Cristo Senhor Nosso e da Santíssima Virgem. E assim, em lugar de atrofiarmas a imaginação, a povoaremos de piedosas representaçoes que desterrarão as que poderiam ser perigosas e nos porão em condições de melhor compreender e explicar aos nossos ouvintes as cenas evangélicas.
III. Da Mortificação das Paixões
As paixões, no sentido filosófico do termo, não são necessária e absolutamente más: são forças vivas, muitas vezes impetuosas, que se podem utilizar para o bem como para o mal, contanto que as saibamas disciplinar e orientar para um fim nobre. Mas, na linguagem popular e em certos autores espirituais, emprega-se esta palavra em sentido pejorativo, para designar as paixões más. Vamos pois: 1 - recordar as principais noções psicológicas sabre as paixões; 2 - indicar as seus bons e maus efeitos, 3 - traçar regras para o seu bom uso.
A psicologia das paixões. Não fazemos aqui mais que relembrar o que se expõe mais longamente na Psicologia:
1 - Noção. As paixões são movimentos impetuosos do apetite sensitivo para o bem sensível com repercussão mais ou menos forte sobre o organismo.
a) Na base da paixão, há pois, um certo conhecimentao, ao menos sensível, dum bem esperado ou adquirido ou dum mal contrário a este bem; deste conhecimento é que brotam os movimentos do apetite sensitivo.
b) Estes movimentos são impetuosos e distinguem-se assim dos estados afetivos agradáveis ou desagradáveis que são calmos, tranqüilos, sem aquele ardor, aquela veemêncía que há nas paixões.
c) Precisamente porque são impetuosos e atuam fortemente sobre o apetite sensitivo, é que têm repercussão até no organismo físico, por causa da estreita união entre o corpo e a alma. Assim, a cólera faz afluir o sangue ao cérebro e distende os nervos, o medo faz empalidecer, o amor dilata a coração, o temor cantrai-a. Nem em todos, porém, se apresentam no mesmo grau estes efeitos fisiológicos, que dependem do temperamento de cada um e da intensidade da paixão, bem como do domínio que cada qual adquire sobre si mesmo.
Diferem, pois, as paixões dos sentimentos, que são movimentos da vontade, e, por conseguinte, supõem conhecimento da inteligência e, com serem fortes, não têm a violência das paixões. Assim é que há amor-paixão e amor-sentimento, temor passional e temor intelectual. - Acrescentemos que no homem, animal racional, as paixões e os sentimentos se combinam muitas vezes, quase sempre, em doses variadíssimas, e que é pela vontade, auxiliada pela graça, que chegamos a transformar em nobres sentimentos as paixões mais ardentes, subordinando estas àqueles.
2 - O seu número. Enumeram-se geralmente onze paixões, que derivam todas do amor, como excelentemente demonstra Bassuet «As nossas demais paixões referem-se todas unicamente ao amor que a todos encerra e excita».
1) O amor é a paixão de se unir a uma pessoa ou de possuir uma coisa que agrada.
2) O ódio é a paixão de afastar de nós qualquer coisa que nos desagrada; nasce do amor, neste sentido que odiamos o que se opõe ao que amamos. Assim, por exemplo, eu não odeio a doença, senão porque amo a saúde; não odeio uma pessoa, senão porque ela me põe algum abstáculo à posse do que amar.
3) O desejo consiste em procurar o bem ausente, e nasce de amar-mos esse bem.
4) A aversão (ou fuga) leva-nos a afastar o mal que se avizinha de nós.
5) A alegria não é mais que a fruição do bem presente.
6) A tristeza, pelo contrário, aflige-se e desvia-se do mal presente.
7)A audácia (ousadia ou coragem) esforça-se por se unir ao objeto amado, cuja aquisição é dificultosa.
8) O temor impele-nos a fugir dum mal difícil de evitar.
9) A esperança tende com ardor para o abjeto amado, cuja aquisição é possível, se bem que dificultosa.
10) O desespero nasce na alma, quando a aquisição do objeto amado parece impossível.
11) A cólera repele violentamente a que nos faz mal e excita o desejo da vingança.
As seis primeiras paixões, que têm origem no apetite concupiscível, são comumente chamadas pelas modernas paixões de gozo; as outras cinco, que se referem ao apetite irascível, denominam-se paixões combativas.
Os efeitos das Paixões
Os Estóicos pretendiam que as paixões são radicalmente más e que, por conseguinte, devem ser suprimidas; os Epicureus divinizam as paixões e proclamam a altas vozes que é um dever segui-las. É o que os nossos modernos epicuristas chamam: viver a sua vida. O Cristianismo conserva o meio entre esses dois excessos: nada do que Deus pôs na natureza humana é mau. O próprio Cristo Senhor Nosso teve paixões bem ordenadas: amou não somente com a vontade, senão também com o coração e chorou sobre Lázaro e sobre Jerusalém, a infiel; deixou-se possuir duma santa cólera, sofreu o temor, a tristeza, o tédio; mas soube conservar essas paixões com o império da vontade e subordiná-las a Deus. Quando, pelo contrário, as paixões são desordenadas, produzem os mais perniciosos efeitos; é preciso, pois, mortificá-Ias, discipliná-las.
Efeitos das Paixões Desordenadas. Chamam-se desordenadas as paixões que tendem para um bem sensível proibido, ou até mesmo para um bem permitido, mas com demasiada sofreguidão e sem referir a Deus. Ora, estas paixões desordenadas:
A)Cegam a Alma,lançando-se para o seu objeto com impetuosidade, consultar a razão, deixando-se guiar pelo instinto ou pelo prazer. Ora, há um elemento perturbador que tende a falsear o juízo e a obscurecer a reta razão. Como o apetite sensitivo é cego, por natureza, se a alma se guiar por ele, cega-se a si mesma: em vez de se deixar conduzir pelo dever, deixa-se fascinar pelo prazer do momento. É como uma nuvem que a impede de ver a verdade; obcecada pela poeira que as paixões levantam, a alma já não vê claramente a vontade divina nem o dever que se lhe impõe de ser apta para julgar retamente as coisas.
B)Fatigam a Alma e fazem Sofrer
1- As paixões, diz São João da Cruz, ”são como rapazitos inquietos e descontentadiços, que sempre estão pedindo à mãe ora isto, ora aquilo, e não acabam de ficar satisfeitos. E assim como se cansa e fatiga o que cava por cobiça o tesouro, assim de cansa e fatiga a alma por conseguir o que seus apetites lhe pedem; e, ainda que o consiga por fim, sempre se cansa, porque nunca se satisfaz…E cansa-se e aflige-se a alma seus apetites, porque é ferida, agitada e perturbada por eles, como a água pelos ventos”
2 - Daqui um sofrimento tanto mais intenso quanto mais vivas são as paixões: porque elas atormentam a pobre alma, até serem contentadas, e, como o apetite vem com o comer, reclamam as paixões cada vez mais; se a consciência protesta, impacientam-se, agitam-se, solicitam a vontade para que ceda aos seus caprichos que incenssantemente renascem: é tortura inexprímível.
c) Enfraquecem a Vontade. Solicitada em sentidos diversos por essas paixões rebeldes, vê-se forçada a vontade a dispersar as próprias forças, que por isso mesmo vão enfraquecendo. Tudo o que cede às paixões, aumenta nelas as exigências e diminui em si as energias. Semelhantes às gameleiras inúteis e vorazes que brotam do tronco duma árvore, os apetites que se não dominam, vão-se desenvolvendo e roubando força à alma, como os rebentos parasitas à árvore. E não tardará o momento em que alma enfraquecida caia no relaxamento e na tibieza, disposta a todas as capitulações.
d) Maculam a alma. Quando esta, cedendo às paixões, se une às criaturas abate-se ao nível delas e contrai a sua malícia e as suas manchas; em vez de ser imagem fiel de Deus, torna-se imagem das coisas a que se apega; grãos de pó, manchas de lodo vêm embarciar-Ihe a beleza e opor-se à união perfeita com Deus.«Um só apetite desordenado, diz São João da Cruz , ainda quando não seja de matéria de pecado mortal, basta para pôr uma alma tão escura, manchada e feia que de modo nenhum pode convir com Deus em qualquer união (íntima), até dele se purificar. Qual será, pois, a fealdade da que de todo está desordenada em suas próprias paixões e entregue a seus apetites, e quão distanciada estará da pureza de Deus! Não se pode explicar com palavras, nem ainda campreender-se com o entendimento a variedade de imundície que a variedade de apetites causam na alma ... ». Cada apetite depõe, a seu modo, a sua parte especial de impureza e fealdade na alma.
Conclusão. Quem quiser, pois, chegar à união com Deus, tem que mortificar todas as paixões, ainda as mais pequenas, enquanto são voluntárias e desordenadas. É que a união perfeita supõe que em nós não há nada contrário à vontade de Deus, nenhum apego voluntário à criatura e a nós mesmos. Tanto que, de propósito deliberado, nos deixamos extraviar por qualquer paixão, deixa de haver união perfeita entre a nossa vontade e a de Deus. lsto é sobretudo verdade das paixões ou apegos habituais, que paralisam a vontade, até mesmo quando são leves. É abservação de São João da Cruz «que a avezinha esteja presa a um fio delgado ou grossa, pouco importa: não lhe será possível voar, senão depois de o haver quebrado».
Utilidades das paixões bem ordenadas. Quando, pelo contrário, estão as paixões bem ordenadas, isto é, orientadas para o bem, moderadas e submetidas à vontade, têm as mais preciosas utilidades, porque são forças vivas ardentes, que nos vêm estimular a atividade da inteligência e da vontade e prestar-lhes desse modo poderoso auxílio:
a) Atuam sabre a inteligência, excitando em nós ardor no trabalho, desejo de conhecer a verdade. Quando um objeto nos apaixona, no bom sentido da palavra, somos todos olhos e ouvidos, para o conhecermos bem, o espírito aprende mais facilmente a verdade, a memória é mais tenaz para a reter. Eis aqui, por exemplo, um inventor animado de ardente patriotismo: vede como trabalha com mais ardor, tenacidade e perspicácia, precisamente porque quer prestar serviço à sua pátria. Do mesmo modo um estudante, sustentado pela nobre ambição de pôr a sua ciência ao serviço dos seus compatriotas, faz mais esforços e chega a resultados mais apreciáveis. Mas sobretudo quem ama apaixonadamente a Jesus Cristo, estuda o Evangelho, com mais entusiasmo, compreende-o e encontra nele maior sabor; as palavras da divino Mestre são para ele oráculos, que inundam a sua alma de luzes deslumbrantes.
b) Atuam igualmente sabre a vontade, para a arrastar e decuplar as suas energias: a que se faz com amor faz-se melhor, com mais aplicação, constãncia, e feliz êxito. Que tentativas não faz o amor de mãe para salvar um filho? Que de atos heróicos inspirados pelo amor da pátria?! Do mesmo modo, quando um santo, está apaixanado de amor de Deus e das almas, não recua diante de nenhum esforço, sacrifício ou humilhação, para salvar os seus irmãos. Nãa há dúvida que quem impera estes atos de zelo é a vontade, mas a vontade, inspirada, estimulada, sustentada par uma santa paixão. Ora, quando os dois apetites, sensitivo, e intelectual, por outros termos, quando o coração e a vontade trabalham na mesma direção e unem as suas forças, os resultados são evidentemente muito mais apreciáveis e duradouros. lmporta, pois, ver como se podem utilizar as paixões.
Do Bom Uso das Paixões
Recordando as princípios psicológicos que podem facilitar-nos a tarefa, indicaremos como se resiste às paixões más, como se orientam as paixões para o bem, e como se moderam.
1. Princípios psicológicos que se devem utilizar Para dominar as paixões, é preciso antes de tudo, contar com a graça de Deus e, por conseguinte, com a oração e os sacramentos; mas é mister usar também duma tática judiciosa, fundada na psicologia.
a) Qualquer idéia tende a provocar o ato correspondente, mormente se é acampanhada de vivas emoções e fortes convicções. Assim, pensar no prazer sensível, representando-a vivamente com a imaginação, provoca um desejo e muitas vezes um ato sensual; pela contrário, pensar em nobres ações, representar-se a si própria os felizes resultados que produzem, excita a desejo de praticar atos desse gênero. Isto é sobretudo verdade da idéia que não permanece abstrata, fria, incolor, mas que, sendo acampanhada de imagens sensível, se torna concreta, viva, e, por isso mesmo, arrebatadora; é nesse sentido que se pode dizer que a idéia é uma força, um primeiro impulso, um começo de ação. Quem desejar, pois, dominar as paixões más, tem que afastar com cuidado qualquer pensamento, qualquer imaginação que represente o prazer mau como atraente; quem, pelo contrário, quiser cultivar as boas paixões ou os bons sentimentos, tem que alimentar em si pensamentos e imagens que mostrem o lado belo do dever e da virtude, tornando essas reflexões, quanto passível, concretas e vivas.
b) A influência duma idéia prolonga-se enquanto não é eclipsada por outra idéia mais forte que a suplante; assim, um desejo sensual continua a solicitar a vontade, enquanto não é expulsa por um pensamento mais nobre que se apodere da alma. Quem pretende, pois, desembaraçar-se dele, tem que se entregar, por meio duma leitura ou estudo interessante, a uma série de pensamentos totalmente diferentes ou contrários; quem, pelo contrário, quer intensificar um bom desejo, prolonga-o, meditando sobre coisas que a possam alimentar.
c) A influência duma idéia aumenta, associada a outras idéias conexas, que a enriquecem e lhe dão maior amplidão. Assim, o pensamento e desejo de salvar a própria alma torna-se mais intenso e eficaz, se for associado à idéia de trabalhar para salvar a alma dos nossos irmãos, como se vê, por exemplo, em São Francisco Xavier.
d) Enfim, a idéia atinge a máxima potência, quando se torna habitual, absorvente, uma espécie de idéia fixa que inspira todos os pensamentos e todas as ações. É isto o que se nota, sob o aspecto natural, naqueles que não têm senão uma idéia, por exemplo, a de fazer esta ou aquela descoberta; e sob o aspecto sobrenatural, naqueles que se deixam penetrar de tal modo duma máxima evangélica, que esta se torna a regra da sua vida, por exemplo: Vende tudo e dá-o aos pobres; .ou: que importa ao homem ganhar o universo, se vem a perder a sua alma; ou ainda: para mim a vida é Cristo.É necessário, pois, ter a mira em arreigar prafundamente na alma algumas idéias diretrizes, dominadoras, absorventes, depois reduzi-las à unidade por meio duma divisa ou máxima, que as concretize e conserve incessantemente presentes ao espírito, por exemplo: Deus meus et omnia! Ad maiorem Dei gloriam! Deus só basta! Quem tem Jesus tem tudo! Esse cum Iesu dulcis paradisus! Com uma divisa destas, será mais fácil triunfar das paixões más e utilizar as boas.
2. Como combater as Paixões Desordenadas. Tanto que a consciência nos adverte que em nossa alma se levanta um movimento desordenado, é necessário apelar para todos as meios naturais e sobrenaturais, para a refrear e dominar.
a) Logo desde a princípio, é mister usar do poder de inibição da vontade, auxiliada pela graça, para travar esse movimento. Assim, por exemplo, importa evitar os atos ou gestos exteriores, que não podem senão estimular ou intensificar a paixão: quem se sente invadido pela cólera, deve evitar os gestos desordenados, os clamores, calando-se até que volte o sossego. Tratando-se duma afeição demasiadamente viva, devem-se evitar os encontros com a pessoa amada; é preciso fugir de lhe falar e sobretudo de exprimir de qualquer modo, ainda mesmo indireta, a afeição que se sente para com ela. Assim, vai enfraquecendo a paixão pouco a pouco.
b) Mais ainda: tratando-se duma paixão de gozo, é necessário esquecer o objeto dessa paixão. Para a conseguirmos:
1) Cumpre-nos aplicar fortemente a imaginação e o espírito a qualquer ocupação honesta que nos possa distrair do objeto amado: por exemplo, o estudo, a solução dum problema, o jogo, o passeio com outros, a conversação, etc.
2) Quando começa a restabelecer-se a paz, é apelar para as reflexões de ordem moral, que possam armar a vontade contra a sedução do prazer; considerações naturais, como os inconvenientes, para o presente e para o futuro duma ligação perigosa, duma amizade demasiado sensível ; mas sobretudo considerações sobrenaturais, tais como a impassibilidade de avançar na perfeição, enquanto se mantêm esses apegos, as cadeias que se forjam, a salvação em perigo, o escândalo que se pode dar, etc. Tratando-se de paixões combativas, como a cólera, o ódio, depois de termos fugido, um momento, para diminuir a paixão, podemos muitas vezes tomar a ofensiva, pondo-nas em frente da dificuldade, convencendo-nas pela razão e sobretudo pela fé que entregar-se à cólera ou ao ódio é indigna dum homem e dum cristão; que permanecer calmo, senhor de si, é quanto há de mais nobre, digna e conforme ao Evangelho.
c) Procurar-se-á, enfim, fazer atos positivos contrários à paixão. Quem experimentar antipatia para com uma pessoa, procederá como se quisesse ganhar-lhe a simpatia, esforçar-se-á por lhe prestar serviço, ser amável para com ela, e sobretudo orar por ela. Não há nada que abrande o caração como uma oração sincera por um inimigo. Quem, pelo contrário, sente afeição excessiva para com uma pessoa, deve evitar a sua campanhia, ou, sendo isso impossível, testemunhar-lhe essa fria cortesia, essa espécie de indiferença que se tem para com o comum dos homens. Estes atos contrários acabam por enfraquecer e fazer desaparecer a paixão, mormente se sabem cultivar as boas paixões.
3. Como orientar as Paixões para o Bem. Dissemos acima que as paixões em si não são más; podem, pois, ser orientadas para o bem, todas sem exceção alguma:
a) O amor e a alegria podem-se nortear para as afeições puras e legítimas da família, para as amizades boas e sobrenaturais; mas sobretudo para Nosso Senhor Jesus Cristo, que é de todos os amigos o mais terno, o mais generoso, o mais dedicado. É, pois, neste sentido que importa dirigir o nosso coração, lendo, meditando, pondo em prática os dois belos capítulos da lmitação que têm sido e continuam sendo o encanto de tantas almas, De amore Iesu super omnia, De familiari amicitia Iesu.
b) O ódio e a aversão voltam-se contra o pecado, o vício e tudo quanto a ele conduz, para o aborrecer e evitar: «Iniquitatem odio habui».
c) O desejo transforma-se numa legítima ambição, a ambição natural de honrar a sua família e a seu país, a ambição sobrenatural de vir a ser um santo, um apóstolo.
d) A tristeza, em vez de degenerar em melancolia, converte-se numa doce resignação em presença das provações que para o cristão são uma semente de glória, ou numa terna compaixão para com Jesus que sofre e é ofendido, ou para com as almas aflitas.
e) A esperança torna-se esperança cristã, confiança inabalável em Deus, e multiplica as nossas energias para o bem.
f) O desespero transforma-se em justa desconfiança de nós mesmos, fundada em nossa impotência e pecados, mas temperada pela confiança em Deus.
g) O temor, em lugar de ser um sentimento deprimente que enfraquece a alma, é no cristão uma fonte de energia: o cristão teme o pecado e o inferno, mas este temor legítimo arma-o de coragem contra o mal; teme sabretudo a Deus, treme de O ofender e despreza o respeito humano.
h) A cólera, em vez de nos roubar a domínio sabre nós mesmos, não é senão uma justa e santa indignação, que nos torna mais fortes contra o mal.
i) A audácia converte-se em intrepidez diante das dificuldades e perigos: quanto mais dificultosa é uma coisa, tanto mais digna dos nossos esforços nos parece.
Para se chegar a este feliz resultado, nada vale tanto como a meditação, acompanhada de piedosos afetos e generosas resoluções. É por ela que se forma um ideal e se radicam profundas convicções que dele nos aproximam cada dia. E na verdade, o que importa é provocar e conservar na alma idéias e sentimentos conformes às virtudes que se querem praticar, afastar pelo contrário as imagens e impressões conformes aos vícios que se pretendem evitar. Ora, para atingir este resultado, neste trato íntimo com Deus, infinita verdade e bondade, torna-se dia a dia mais amável a
virtude, mais odioso o vício, e a vontade, fortificada por essas convicções, arrasta as paixões para o bem, em vez de se deixar arrastar a si mesma por elas para o mal.
4. Como se devem Moderar as Paixões
a) Até mesmo quando as paixões estão orientadas para o bem, importa saber moderá-las, isto é, submetê-las à direção da razão e da vontade, as quais por seu turno devem ser guiadas pela fé e pela graça. Sem o que, as paixões seriam por vezes excessivas, porque de sua natureza são
demasiado impetuosas. Assim, por exemplo, o desejo de orar com fervor pode degenerar em contensão de espírito, o amor para com Jesus Cristo pode traduzir-se por meio de esforços de sensibilidade que consomem o corpo e a alma; a zelo intempestivo vem a dar em esgotamento nervoso, a indignação converte-se em cólera, a alegria degenera em dissipação. Estamos muito particularmente expostos a estes excessos neste século, em que a atividade febril dos nossos contemporâneos se torna contagioso. Ora estes movimentos ardentes, ainda quando tendem para a bem, fatigam e gastam o espírito e o corpo e, em todo caso, não podem ser muito duradouros, violenta non durant; e contudo o que faz maior bem é a
continuidade no esforço.
b) lmporta, pois, sujeitar a própria atividade ao juízo dum prudente diretor e seguir os conselhos da sabedoria:
1) Habitualmente, é necessário ter, na cultura dos nossos desejos e paixões, uma certa moderação e tranqüilidade, evitando a tensão permanente: é necessário poupar a montada, para se chegar ao termo da carreira, e por conseqüência evitar a azáfama excessiva que consome as forças; a nossa pobre máquina humana não pode estar constantemente sob pressão, aliás arrebenta.
2) Antes dum grande esforço que é indispensável fazer-se, ou depois dum dispêndio considerável de energia, requer a prudência que se imponha algum repouso às ambições mais legítimas, ao zelo mais ardente e mais puro. É o exemplo que nos deixou Nosso Senhor Jesus Cristo; de tempos em tempos
convida os seus discípulos ao descanso: «Venite seorsum in desertum locum et requiescit pusillum» Assim dirigidas e moderadas, as paixões, longe de serem obstáculos à perfeição, serão meios eficacíssimos para dela nos aproximarmos cada dia; e a vitória obtida sobre elas permitir-nos-á
disciplinar melhor as faculdades superiores.
Da Mortificação das Faculdades Superiores.Estas faculdades superiores, que constituem o homem, enquanto homem, são a inteligência e a vontade. Como foram também atingidas pelo pecado original, é evidente que precisam igualmente de ser disciplinadas.
I. Mortificação ou Disciplina da Inteligência
O entendimento foi-nos dado para conhecer a verdade. Deus sobretudo e as coisas divinas. Deus é que é o verdadeiro sol dos espíritos; ilumina-nos por meio de duas luzes a luz da razão e a da fé. No estado presente, não podemos chegar à verdade integral sem o concurso delas ambas; menosprezar uma ou outra, é cegar-se a si mesmo. E tanto mais importante é disciplinar a inteligência quanto é certo que é ela que ilumina a vontade e lhe permite orientar-se para o bem; é ela que, com o nome de consciência, é a regra da nossa vida moral e sobrenatural. Mas, para ser assim de fato, é indispensável mortificar as suas tendências defeituosas. Eis as principais: a ignorãncia, a curiosidade e a precipitação, o orgulho e a teimosia:
A ignorância combate-se pela aplicação metódica e a constante ao estudo, mormente ao estudo de quanto se refere a Deus, nosso fim último, e aos meios de O alcançar. E na verdade, bem desarrazoado seria ocupar-se o homem de todas as ciências e descurar a da salvação. É certo que cada um deve estudar, nas ciências humanas, as que se referem aos seus deveres de estado; mas, sendo como é dever primordial de todos conhecer a Deus para O amar, descurar este estudo seria inescusável. E contudo, quantos cristãos, muito instruídos neste ou naquele ramo das ciências, não chegam a passuir nem sequer um conhecimento rudimentar das verdades cristãs, dos dogmas, da moral e da ascética! Hoje, felizmente, manifesta-se algum progresso nas classes elevadas, e há círculos de estudo em que se profundam com o mais vivo interesse todas as questões religiosas, sem excetuar a espiritualidade. Deus seja bendito, e oxalá que este movimento alastre!
A curiosidade é uma doença do espírito que não faz senão aumentar a ignorância religiosa: é que, na verdade, enquanto nos arrasta com excessivo ardor para os conhecimentos mais agradáveis que úteis, faz-nos perder tempo muito precioso. Muitas vezes é acompanhada a ansiedade e precipitação, que faz nos deixemos absorver nos estudos que lisonjeiam a curiosidade, com detrimento das que são mais importantes. Para Triunfar dela é Mister:
1) Estudar em primeiro lugar não o que agrada, senão o que é útil, sobretudo o que é necessário: «id prius quod est magis necessarium», diz Sãa Bernardo, não nos ocupando do resto senão por modo de recreação. Por conseguinte, não se deve ler senão com sobriedade o que alimenta a imaginação mais que o espírito, como a maior parte dos romances, ou o que se refere às novidades e boatos do mundo, como os jornais e certas revistas.
2) Nestas leituras, cumpre-nas evitar a sofreguidão excessiva, não querer devorar rapidamente um volume inteiro. Ainda quando se trate de boas leituras, importa fazê-las lentamente, para melhor se compreender e saborear o que se lê.
3) O que mais facilmente conseguiremos, se estudarmos, não por curiosidade, não para nos comprazermos na própria ciência, senão por um motivo sobrenatural, para nos edificarmos a nós mesmos e edificarmos os demais: «ut aedificent, et caritas est ... ut aedificentur, et prudentia est». Porquanto, como diz com razão Santo Agostinho, a ciência deve ser posta ao serviço da caridade: «Sic adhibeatur scientia tanquam machina quaedam per quam structura caritatis assurgat». lsto é verdade, até mesmo na estudo das questões de espiritualidade. É que, efetivamente, não falta quem, nos seus estudos, busque antes a satisfação da curiosidade e do orgulhao do que a pureza do coração e a prática da mortificação.
O orgulho deve-se, pois, evitar, esse orgulho do espírito, que é mais perigoso e difícil de curar que a da vontade, diz Scupoli. É este orgulho que torna dificultosas a fé e a obediência aos superiores. O argulhoso quereria bastar-se a si mesmo, tal é a confiança que tem na própria inteligência; custa-lhe receber os ensinamentos da fé, ou ao menos quer submetê-los à crítica e interpretação da própria razão. Do mesmo modo é tal a confiança que tem no seu juízo que não gosta de consultar os outros, especialmente os superiores. Daí, imprudências lamentáveis; daí, um aferro tal às próprias idéias, que o leva a condenar em tom categórico as opiniões que não são conformes às suas. É esta uma das causas mais freqüentes dessas divisões que se observam entre cristãos, às vezes até entre autores católicos. Santo Agostinho estigmatizava já no seu tempo essas desgraçadas divisões que destroem a paz, a concórdia e a caridade: «sunt unitatis divisores, inimici pacis, cariratis expertes, vanitate tumentes, placentes sibi et magni in oculis suis». Para Curar este Orgulho do Espírito:
1) É preciso, antes de tudo, submeter-se, com docilidade infantil, aos ensinamentos da fé: não há dúvida que é permitida buscar aquela inteligência dos nossos dogmas, que se obtém por meio de paciente e laboriosa investigação, utilizando os trabalhos dos Santos Padres e Doutores, sobretudo de Santo Agostinho e Santo Tomás; mas é necessário fazê-lo com piedade e sobriedade, como diz o Concílio do Vaticano, inspirando-nos da máxima de Santo Anselmo: fides quaerens intellectum. Então, evita-se esse espírito hipercrítico que atenua e minimiza os nossos dogmas, a pretexto de os explicar: então, submete-se o próprio juízo não somente às verdades de fé senão também às direções pontifícias; mas também então, nas questões livremente discutidas, deixa-se aos outros a liberdade que se reclama para as próprias opiniões, e não se tratam com desdém transcendente as opiniões contrárias. É assim que se consegue a paz dos espíritos.
2) Nas discussões travadas com os outros, é mister buscar, não a satisfação do orgulho e o triunfo das próprias idéias, mas a verdade. É raro que não haja nas opiniões adversas, uma parte de verdade que até então nos havia escapado: escutar as razões dos adversários com atenção e imparcialidade e conceder-Ihes o que há de justo nas suas observações é ainda o melhor meio de nos aproximarmos da verdade, bem como de salvaguardamos as leis da humildade e caridade. Em resumo: é mister, para disciplinar a própria inteligência, estudar o que é mais necessário e fazê-lo com método, constância e espírito sobrenatural, isto é, com desejo de conhecer, amar e praticar a verdade.
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II. Mortificação ou Educação da Vontade
1. Necessidade. A vontade é no homem a faculdade-mestra, a rainha de todas as demais faculdades, a que as governa; é ela que, por ser livre, dá não somente aos seus atos próprios (ou ilícitos), mas ainda aos atos das outras faculdades que ela manda (atos imperados), liberdade, mérito ou demérito. Regular a vontade é, pois, regular o homem todo. Ora a vontade está bem regulada, se é assaz forte para imperar às faculdades inferiores, e assaz dócil para obedecer a Deus: tal é o seu duplo papel. Tanto um como outro é difícil; porque muitas vezes as faculdades inferiores revoltam-se contra a vontade e não se submetem ao seu império, senão quando se sabe aliar a prudência com a firmeza. É que, efetivamente, a vontade não tem poder absoluto sobre as faculdades sensíveis, mas sim uma espécie de poder moral, poder de persuasão, para as conduzir à submissão. Somente, pois, com dificuldade e esforços muitas vezes renovados, é que se chega a submeter à vontade as faculdades sensíveis e as paixões. - E não custa menos submeter perfeitamente a própria vontade à de Deus: nós aspiramos a uma certa autonomia, e, como a vontade divina nos não pode santificar, sem nos exigir sacrifícios, muitas vezes recuamos diante do esforço e preferimos os nossos caprichos à santa vontade de Deus. Por conseguinte, ainda neste ponto é indispensável a mortificação
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2- Meios práticos. Para se conseguir a educação da vontade, é mister torná-la assaz dócil para obedecer a Deus em todas as coisas, e assaz forte para imperar ao corpo e à sensibilidade. Para se atingir este fim, é necessário eliminar os obstáculos e lançar mão dos meios positivos.
A) Os principais obstáculos:
a) Interiores são:
1) a irreflexão: não refletimos antes de praticar uma ação, antes seguimos o impulso do momento, a paixão, a rotina, o capricho; por conseguinte, refletir antes de passar ao ato e perguntar-nos a nós mesmos o que quer Deus de nós;
2) a azáfama febril que, produzindo uma tensão demasiadamente forte e mal dirigida, arruína o corpo e a alma sem utilidade nenhuma, e muitas vezes nos leva a extraviar-nos para o mal; por conseqüência, paz e sossego, moderação até mesmo no bem, para se fazer fogo que dure e não fogo de palha;
3) a negligência, ou a indecisão, a preguiça, a falta de energia moral que paralisa ou atrofia as forças da vontade; logo fortificar as próprias convicções e energias, de maneira que vamos dizer;
4) o medo de fazer fraca figura ou a falta de confiança, que diminui singularmente as nossas forças; pelo contrário, é preciso convencermo-nos que com o auxílio de Deus podemos estar seguros de chegar a bons resultados.
b) A estes obstáculos outros se vêm juntar de fora:
1) O respeito humano, que nos torna escravos dos outros, fazendo-nos recear as suas críticas e zombarias; combate-se com a convicção de que, afinal, o que tem valor é o juízo de Deus, sempre sábio, e não o dos homens, sempre falível;
2) Os maus exemplos, que tanto mais facilmente nos arrastam, quanto mais correspondem a uma propensão da nossa natureza; lembremo-nos então de que o único modelo que é forçoso imitar é Jesus, nosso Mestre e nosso Chefe, e que o cristão deve fazer tudo o oantrário do que faz o mundo.
Quanto aos meios Positivos, consistem em combinar harmonicamente o trabalho da inteligência, da vontade e da graça:
a) À inteligência pertence fornecer aquelas convicções profundas, que serão ao mesmo tempo guia e estímulo para a vontade. Essas convicções são as que são próprias para determinarem a vontade e escolher o que é o conforme à vontade de Deus. Resumem-se nisto: Deus é o meu fim e Jesus é o caminho que devo seguir para o alcançar; devo, pois, fazer tudo por Deus, em união com Jesus Cristo; um só obstáculo se opõe ao meu fim: a pecado; logo devo evitá-lo e, se tiver a infelicidade de o cometer, repará-lo imediatamente; - um só meio é necessário e basta para evitar o pecado: fazer constantemente a vontade de Deus; devo, pois, procurar incessantemente conhecê-Ia e conformar com ela o meu procedimento. E, para a conseguir, repetirme-ei a mim mesmo amiudadas vezes a palavra de São Paulo no momento da sua conversão: “Senhor, que quereis que eu faça, Domine, quid me vis facere? À noite, no exame de consciência, penitenciar-me-ei das mais pequeninas faltas.
b) Estas convicções exercerão poderosa influência sobre a vontade. Esta, de sua parte, deverá operar com decisão, firmeza e constância.
1) É necessária decisão: depois de se haver refletido e orado, segundo a importância da ação que se vai praticar, importa decidir-se imediatamente, sem embargo das hesitações que poderiam persistir: a vida é demasiadamente curta para se perder tempo considerável a deliberar sem fim. Toma-se, pois, decisão pelo que parece mais conforme à vontade divina, e Deus, que vê as nossas disposições, abençoará a ação.
2) Esta decisão deve ser firme. Não basta dizer: eu bem quisera, eu desejo: tudo isso não passa de veleidade. É mister dizer: quero e quero, custe o que custar; e pôr-se imediatamente à obra, sem esperar pelo dia de amanhã, sem aguardar as grandes ocasiões: a firmeza nas pequenas ações é que assegura a fidelidade nas grandes.
3) Contudo esta firmeza não é violência: é tranqüila, porque quer durar; para a tornar constante, renovar-se-ão muitas vezes os esforços, sem jamais se descoroçoar pelos reveses que sobrevenham: ninguém é vencido, senão quando abandona a luta. A despeito de alguns desfalecimentos e até mesmo de algumas feridas, deve-se o homem considerar como vitorioso, porque apoiado em Deus é realmente invencível. E ainda quando houvesse a desgraça de sucumbir um mo mento, é levantar-se imediatamente: com o divino médico das almas não há ferida, não há doença incurável.
c) É, pois, em última análise, com a graça de Deus que o homem deve contar; se a pedirmos com humildade e confiança, não nos será jamais recusada, e com ela somos invencíveis. Devemos, pois, renovar amiúde as nossas convicções sobre a absoluta necessidade da graça, particularmente ao começarmos qualquer ação importante; pedi-la com instância, em união com Nosso Senhor Jesus Cristo, para termos maior segurança de a alcançar; lembrar-nos de que Jesus é não somente o nosso modelo, mas ainda o nosso colaborador, e apoiar-nos com confiança Nele, seguros de que Nele podemos empreender e realizar tudo na ordem da salvação: «Omnia possum in eo qui me confortat». Então, a nossa vontade será forte, porque participará da força da mesmo Deus: Dominus fortitudo mea; será livre: porque a verdadeira liberdade não consiste em nos entregarmos às paixões, que nos tiranizam, senão em assegurar o triunfo da razão e da vontade sobre o instinto e a sensualidade.
Conclusão. Assim se realizará o objetivo que havíamos assinado à mortificação: submeter os nossos sentidos e faculdades inferiores à vontade, e esta a Deus.
Segundo, TANQUEREY, Adolph: A Vida Espiritual Explicada e Comentada. Anápolis: Aliança Missionária Eucarística Mariana, 2007. pgs. 403-434).
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