terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

As duas Formas do Rito Romano: “Enriquecimento Mútuo” na teoria e na prática

“Fala-se muito de ‘Reforma da Reforma’ e de enriquecimento da ‘Forma Ordinária do Rito Romano’ pela ‘Forma Extraordinária’, porém, na prática, o que acontece? Este artigo responde a pergunta (ML)”



Resumo:

Até que ponto as orações e ações cerimoniais do usus antiquior podem ser usadas na celebração da Missa com o Missal de Paulo VI? Exemplos de alguns elementos utilizados pelo Arcebispo Ranjith e pelo Papa Bento XVI parecem contradizer na prática a ideia de que tal enriquecimento seja proibido. Um texto do jornal Notitiae, da Sagrada Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, geralmente citado como sendo uma instrução que desencorajaria o uso de elementos tradicionais, é analisado e considerado inconclusivo, especialmente à luz do Summorum Pontificum, considerado em termos de sua aplicação à celebração da forma nova da Missa. O desenvolvimento da forma nova da Missa pela adição de elementos do usus antiquior é distinguido da deformação arbitrária da Liturgia e da imposição dos caprichos pessoais do sacerdote. Alguns possíveis desenvolvimentos práticos futuros são apresentados.

Em 2008, em visita a Maria Vesperbild, um local de peregrinação mariano na Bavária, o Arcebispo Malcom Ranjith, então Secretário da Congregação para o Culto Divino, celebrou a Missa principal no santuário na Festa da Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria. A solenidade da celebração foi percebida, incluindo o fato de que vestimentas de alta qualidade foram usadas (incluindo túnica e dalmática pontifical), a Missa foi celebrada ad orientem, e o Arcebispo referiu-se em seu sermão à importância para os fiéis do senso de sacralidade na celebração da Missa. Apesar de ser talvez mais importante observar em geral que o Arcebispo celebrou a Missa reverentemente e com a devida solenidade, gostaria de destacar um detalhe que foi observado por Gregor Kollmorgen, um dos editores gerais do website New Liturgical Movement:

“Muito interessante, Mons. Ranjith genuflectiu após a transubstanciação de ambas as espécies, e também após a elevação das mesmas, como sempre é feito na forma antiga do rito Romano, o que certamente é uma maneira de sublinhar e reverenciar a Presença Real”.[i]

Não só a atual Instrução Geral ao Missal Romano especifica que há três genuflexões durante a Missa, “a saber: depois da apresentação da Hóstia, após a apresentação do cálice e antes da Comunhão”[ii], mas a redução do número de genuflexões na consagração de duas para uma “após a elevação da Hóstia e após a elevação do cálice” foi introduzida no processo de simplificação que aconteceu antes da revisão completa do Missal em 1970.[iii]

Um exemplo similar de prática litúrgica que parece contradizer as prescrições detalhadas da reforma litúrgica pós-conciliar pode ser observada na maneira como o Papa Bento XVI tem celebrado a Missa em várias ocasiões. Ao incensar o altar no Ofertório, pode ser visto nas tomadas fechadas das câmeras de televisão que ele está dizendo as palavras do Salmo 140 que eram tradicionalmente rezadas nesse momento. Não só o novo Missal Romano omite essas orações, mas uma resposta dada no jornal Notitiae, de 1978, abordou especificamente a questão. A pergunta levantava a questão de diversas práticas que estavam sendo usadas para incensar o altar em um Missa mais solene no novo Rito (naturalmente isso foi considerado como um problema significante na época). Alguns estavam incensando o altar de maneira simples e direta enquanto outros estavam usando os ritos prescritos na versão anterior do Missal. A resposta foi a seguinte:

“Quando as rubricas do Missal de Paulo VI nada ou pouco disserem sobre questões particulares em alguns pontos, não se deve inferir que o rito anterior deva ser observado. Logo, os gestos múltiplos e complexos para incensação conforme prescritos no Missal antigo não devem ser repetidos.”[iv]

Essa resposta vem sendo utilizada há muito tempo para justificar a oposição a qualquer uso de elementos antigos na celebração da nova forma da Missa. Logo, precisamos considerar sua significância antes de fazermos quaisquer sugestões que possam parecer contradizê-la. Em primeiro lugar, a resposta é estruturalmente um non sequitur. Ela declara que quando o Missal de Paulo VI silencia, a conclusão a ser tirada não pode ser que “se tenha que seguir” ou “se deva observar” (oporteat servare) o rito antigo. Daí ela conclui que os “gestos múltiplos e complexos” não devem ser repetidos (non sunt iterandi). Obviamente outra possibilidade abre-se para nós, a saber: ainda que os gestos antigos não tenham que ser seguidos, eles não estão, apesar disso, proibidos. Se a resposta dada no jornal Notitiae deve ser considerada de um ponto de vista legalista, pode-se insistir simplesmente que uma lei dúbia não vincula.

Em segundo lugar, a resposta, se seguida ao pé da letra, leva a conclusões absurdas. Para dar apenas um exemplo, o Ritus Servandus para o usus antiquior dá instruções a respeito de como o sacerdote deve vestir a alva em preparação para a Missa: “Veste-se a alva, baixando a cabeça, e em seguida a manga direita no braço direito e a manga esquerda no braço esquerdo”.[v] A Instrução Geral ao Missal Romano fala de itens a serem preparados para a Missa, e inclui a alva, a estola e a casula, dizendo que amito e cíngulo devem ser usados com a alva “a não ser que, devido à forma da alva, não sejam exigidos.[vi] A Instrução silencia sobre qual braço o sacerdote deve por em qual manga. Logo, se a resposta do Notitiae citada acima é para ser aplicada restritivamente a todos os casos onde o Missal de Paulo VI silencia sobre uma questão que foi especificada no antigo Ritus Servandus, sacerdotes ao celebrarem a forma nova da Missa deveriam vestir sua alva de trás para frente.

Embora cada uma dessas objeções possa parecer perspicaz a seu modo, nem o argumento legalista nem o reductio ad absurdum, oferecem uma conclusão satisfatória para algo provável de se tornar uma questão cada vez mais importante, ainda por cima com exemplos de pessoas como o Arcebispo Ranjith e o Papa atual. A questão levantada e respondida no Notitiae em 1978 adquire uma nova significância após o Summorum Pontificum e a importante carta do Papa Bento XVI aos Bispos do mundo, que acompanha o Motu Proprio. O texto central daquela carta é agora bem conhecido daqueles que incentivam a celebração do usus antiquior, mas também tem relevância para a celebração da forma nova. Por isso arrisco citá-lo mais uma vez:

“Não existe nenhuma contradição entre uma edição e outra do Missale Romanum. Na história da Liturgia há crescimento e progresso, mas nenhuma ruptura. Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial. Faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar”.[vii]

Se aplicarmos esse texto à celebração da forma nova do rito Romano, além de simplesmente aplicá-lo à celebração do usus antiquior, surge um número de pontos relevantes que se opõem a uma atitude que se enraizou por quarenta anos de celebração da forma nova da Missa. Em primeiro lugar, apesar de ter havido algumas grandes simplificações introduzidas no Missal de Paulo VI, essas não podem ser vistas em contradição com os gestos mais solenes e complexos do usus antiquior. Em outras palavras, se um sacerdote genuflecte duas vezes, tanto na consagração da hóstia como na do cálice, ou se ele incensa o altar com os ditos “gestos múltiplos e complexos” enquanto silenciosamente recita os primeiros quatro versículos do Salmo 140, isto não pode ser visto como algo que desrespeita o novo rito, o Concílio Vaticano II ou a “abertura das janelas” da Igreja: “Não existe nenhuma contradição entre uma edição e outra do Missale Romanum”.

Em segundo lugar, os gestos tradicionais podem ser vistos não apenas como algo não contraditório à celebração de acordo com o Missal de Paulo VI, e mais ainda do que simplesmente estando em harmonia com ele: eles devem ser considerados parte do que é “sagrado e grande” tanto para as gerações passadas como para nós. Em terceiro lugar, há que se levantar a questão acerca do alcance da expressão utilizada pelo Papa Bento XVI ao dizer que tais elementos tradicionais da Liturgia Romana não podem ser de improviso proibidos ou mesmo prejudiciais. Da maneira como o próprio Papa celebra a Missa, parece que Bento XVI aplicaria isso a pelo menos alguns elementos tradicionais a serem usados na nova forma, assim como à negação de quaisquer restrições no uso do Missal pré-conciliar em sua inteireza.

Uma indicação ulterior pode ser encontrada na declaração formal feita no primeiro artigo do Summorum Pontificum. Lá, o Papa Bento XVI estabelece: “Estas duas expressões da Lex orandi da Igreja não levarão de forma alguma a uma divisão da Lex credendi da Igreja; são, de fato, dois usos do único Rito Romano”.[viii] Ao estabelecer que as duas formas são dois usos do único Rito Romano, o Papa faz com que a Igreja evite o problema de sacerdotes ou mesmo paroquianos do rito Romano serem potencialmente “bi-rituais”, com todos os problemas canônicos que isso poderia envolver. A importância da declaração para nossos propósitos reside no fato de que “usos” são menos claramente distintos do que “ritos separados”. No crescimento e progresso que acontecem sem ruptura na história da Liturgia, diversos usos desenvolveram-se como parte de um mesmo rito. No curso daquela história, com a mudança acontecendo de forma gradual, um costume local levou muitas vezes, pouco a pouco, a um uso local. Logo, o uso de gestos e orações tradicionais do Missal anteriormente em uso geral não solapa necessariamente o Missal de Paulo VI, mas pode ser visto como parte de sua genealogia histórica e, por essa razão, não contraditório a ele, nem prejudicial a seu desenvolvimento orgânico gradual.

De fato, durante os anos que se seguiram à introdução do Missal de Paulo VI, tentativas de impor uniformidade absoluta mostraram-se ilusórias. Muito propriamente, a Santa Sé interveio para condenar abusos litúrgicos que iam desde o uso de textos não bíblicos para as leituras, até a consagração de uma jarra de vinho em lugar de um cálice, passando pelo uso de matérias e formas inválidas para os sacramentos.[ix] Mesmo diante dessas várias declarações formais, muitos detalhes continuam largamente ignorados: muitos monastérios continuam a consagrar as sagradas espécies em uma jarra, ministros extraordinários continuam a receber a Sagrada Comunhão ao mesmo tempo em que o sacerdote celebrante em algumas paróquias, vários textos do Missal e do Lecionário são substituídos por outros, e o povo reza orações que são reservadas para o sacerdote.

Poder-se-ia argumentar que, se as normas litúrgicas fossem seguidas, a desejada uniformidade da celebração seria alcançada, mas novamente isso é ilusório. Não se devem fechar os olhos para o fato de que a introdução do vernáculo introduziu uma diversidade na celebração litúrgica que é mais ampla em seu impacto nos fiéis do que a diferença entre, por exemplo, o Uso de Sarum e o Missal de São Pio V. No próprio mundo de língua inglesa, usando-se a mesma tradução do Missal, há grandes divergências entre o que o povo experimenta ao ir de uma igreja para outra em uma Missa Dominical, mesmo dentro de uma mesma cidade. Opor-se ao uso de gestos e orações tradicionais no Missal de Paulo VI com base em uma desejada uniformidade tem pouca credibilidade no contexto da radical diversidade que já existe em sua celebração. As orações e gestos tradicionais tenderiam, de fato, a uma maior uniformização na prática.

Na carta que acompanhou o Summorum Pontificum, o Papa Bento XVI disse que uma das razões pelas quais alguns dos fiéis desejariam “reaver a forma da Sagrada Liturgia que lhes era cara” era a dor profunda causada por “deformações arbitrárias na Liturgia”. O Papa João Paulo II chegou a ir além, ao fazer um pedido de perdão aos fiéis:

“Ao chegar ao fim dessas considerações, gostaria de pedir perdão em meu próprio nome e em nome de todos vós, veneráveis e queridos irmãos no episcopado, por tudo que, por qualquer razão, devido a qualquer fraqueza, impaciência ou negligência humana, e também devido à aplicação parcial, tendenciosa e errônea das diretrizes do Concílio Vaticano II, possa ter causado escândalo e distúrbio no que concerne à interpretação da doutrina e da veneração devida a este grande sacramento”.[x]

Na mesma carta, o Papa João Paulo II também condenou o individualismo da parte de sacerdotes ao celebrarem a Missa, e a ideia de que o sacerdote é o “proprietário” da Liturgia e pode marcá-la com seu estilo pessoal.[xi] Assim surge a questão: um sacerdote que venha a usar elementos verbais ou ações da forma antiga da Missa estará promovendo uma “deformação arbitrária” ou impondo seu estilo pessoal? Deve-se olhar para isso da mesma forma que se olha para abusos litúrgicos? Já argumentei que o uso de elementos tradicionais na forma nova da Missa pode ser visto como parte daquele crescimento contínuo e orgânico a que o Papa Bento XVI se referiu na carta que acompanha o Summorum Pontificum; logo, certamente não se trata de uma “deformação”. Também é importante notar que o uso de tais elementos não é um exercício de capricho pessoal por parte do sacerdote celebrante; em vez disso, trata-se do uso de cerimônias e orações que fizeram parte da vida da Igreja por séculos e que, mais recentemente, tiveram sua execução definida de maneira tão exata a ponto de os reformadores litúrgicos considerarem-nas muito rígidas, muito alheias ao engajamento pessoal e oferecendo muito pouco espaço para criatividade. Eles são precisamente o oposto do que seria uma imposição de um estilo pessoal na Sagrada Liturgia.

Permitam-me concluir oferecendo algumas sugestões a respeito de como isso poderia funcionar na prática para um sacerdote que celebre a forma nova do rito Romano em uma paróquia. Classifiquei as sugestões em quatro categorias possíveis e ofereço alguns exemplos em cada caso.



Elementos que são perfeitamente consoantes com as novas rubricas

Quando as rubricas do Missal de Paulo VI instruem o sacerdote a fazer uma reverência, elas nem sempre especificam como essa reverência deve ser feita, o que pode levar a idiossincrasias que, apesar de bem intencionadas, não deixam de ser imposições pessoais na celebração da Missa. Não é incomum que sacerdotes devotos deem um passo atrás no altar e façam uma profunda reverência às palavras “In spiritus humilitatis [...]”, que são incluídas no Ofertório da forma mais nova da Missa.[xii] Esse gesto bem intencionado de devoção provavelmente não causa mal a ninguém, ainda que seja considerado algo singular e uma irregularidade na celebração do usus antiquior. Em tais casos, um sacerdote familiarizado com as rubricas da forma antiga poderia observá-las na forma nova sem haver necessidade de qualquer disputa. A forma antiga poderia dar direção nesses pontos onde não há direcionamento algum na forma nova. Considerações similares poderiam ser feitas no caso de outros gestos rituais, tais como a maneira como o sacerdote junta ou estende suas mãos.

Vale a pena também observar que sacerdotes omitem rotineiramente várias reverências que são prescritas na Instrução Geral: “Uma reverência com a cabeça é feita quando as três Pessoas Divinas são nomeadas em conjunto e aos nomes de Jesus, da Bem-aventurada Virgem Maria, e do Santo em honra de quem a Missa está sendo celebrada”.[xiii] Sacerdotes que aprenderam a celebrar a forma antiga da Missa tendem a observar essa instrução quando celebram a forma nova. Este é um exemplo claro do mútuo enriquecimento que o Papa Bento XVI encorajou, de que sacerdotes familiarizados apenas com a forma nova poderiam se beneficiar.



Elementos que podem ser introduzidos sem distúrbio

Várias das orações silenciosas que são parte da forma antiga do rito Romano poderiam ser facilmente introduzidas pelo sacerdote sem qualquer distúrbio aos fiéis, e em muitos casos sem que ninguém perceba, exceto uma minoria na assembleia que poderia estar familiarizada com o usus antiquior (e que ficaria deliciada). Sob uma visão estrita da lei litúrgica, alguém poderia argumentar que essas orações são usos inofensivos “praeter legem” ou poderia simplesmente conceder que seja legítimo usá-las tendo como base o que argumentei acima.

Temos visto um exemplo do uso que o Santo Padre faz das orações durante a incensação do altar no Ofertório. Sacerdotes sem experiência com a forma antiga não conheceriam necessariamente essas orações; mas muitos sacerdotes jovens e devotos ficariam felizes em aprendê-las e dizê-las silenciosamente. Outros exemplos seriam: as orações ao vestir-se antes da Missa, o Aufer a nobis no caminho para o altar, o Oramus te ao beijar o altar e o Placeat tibi durante o silêncio após a comunhão ou no retorno à sacristia. Esses elementos enriqueceriam genuinamente o Novus Ordo para muitos sacerdotes. Eles também enriqueceriam o rito per accidens para os leigos por estarem contribuindo para a devoção do sacerdote e para a ars celebrandi.



Elementos que poderiam ser justa e facilmente permitidos

Nas rubricas da terceira edição do Missal Romano, o sacerdote é instruído a segurar a patena ligeiramente acima do altar “dizendo em voz baixa” as palavras “Bendito sejais vós, Senhor Deus de toda a criação”. Uma rubrica ulterior instrui: “Se, entretanto, o canto de Ofertório não é cantado, o sacerdote pode falar essas palavras em voz alta; no final, o povo pode aclamar: ‘Bendito seja Deus para sempre’”. Logo, a primeira opção, de acordo com o Missal de Paulo VI, é que as orações do Ofertório sejam ditas silenciosamente pelo sacerdote.[xiv] Isso provê em si mesmo um exemplo de como a familiaridade com a forma antiga pode enriquecer a celebração da forma nova. Quando, em uma Missa sem canto, o sacerdote diz as orações do Ofertório silenciosamente, é provável que o povo estranhe e fique imaginando o que está acontecendo. Gradativamente eles se acostumarão com o fato de que muita coisa pode estar “acontecendo” sem que o sacerdote tenha que dizer palavras ao microfone.

A substituição das orações do Ofertório foi uma das mudanças mais radicais feitas no Missal de Paulo VI. Seria possível, dentro do contexto da celebração da forma nova, permitir que as orações antigas do Ofertório sejam ditas. Similarmente, as várias genuflexões e gestos rituais (principalmente os sinais da cruz) que faziam parte do Cânon Romano poderiam ser permitidos sem qualquer distúrbio aos fiéis. Esses elementos do usus antiquior teriam um impacto psicológico menor do que celebrar a Missa em latim ou celebrá-la ad orientem, que são procedimentos inteiramente legítimos dentro da forma nova. É difícil pensar em uma razão convincente para proibi-los considerando o enriquecimento que eles trariam à celebração da forma nova.

Uma concessão que teria um impacto maior do que usar silenciosamente as orações antigas do Ofertório e os gestos tradicionais durante o Cânon seria permitir que o Cânon fosse dito silenciosamente. Isso foi sugerido pelo Cardeal Ratzinger, que disse:

“Não é mesmo verdade que só a recitação [em voz alta] da oração eucarística completa e não interrompida seja condição para a participação de todos nesse ato central da celebração eucarística. [...] Quem teve uma vez a experiência de estar em [uma] Igreja reunida numa oração do Cânon silenciosa, compreendeu o que é o silêncio pleno; ele é aclamação – alta e emocionante – a Deus e oração cheia do Espírito Santo. Aqui, todos rezam juntamente o Cânon, mesmo sendo um compromisso com a Ordem particular do serviço sacerdotal. ”[xv]

O Cardeal Ratzinger relatou em sua sugestão, feita em 1978, que as primeiras palavras de cada oração pudessem ser ditas em voz alta como uma “dica” para a assembleia em favor de sua própria meditação. Apesar de essa sugestão poder ser uma opção (juntamente com aquela de dizer toda a Oração Eucarística em voz alta), o Cânon silencioso com seus gestos tradicionais liberaria o sacerdote da exigência de proclamar textos em voz alta durante a maior parte da Missa, e liberaria o povo de ser implicitamente persuadido a prestar mais atenção na proclamação do que nas próprias palavras ou no conteúdo da Actio Dei que está acontecendo naquele momento.



Desenvolvimentos possíveis a longo prazo

Se adicionássemos às sugestões acima opções para as orações ao pé do altar, e a restauração da ordem das orações na comunhão do sacerdote, alguns poderiam argumentar que pouca coisa sobraria para distinguir a forma nova do rito Romano da forma antiga. Se isso seria de fato uma desvantagem ou se apresentaria um problema inteiramente diferente é uma questão para outro debate e mais amplo; mas de fato haveria ainda muita diferença: as orações e ciclo de leituras foram radicalmente mudados e poderia haver propostas para permitir esses também, mas neste ponto realmente chegamos a uma questão completamente diferente. A legitimidade de celebrar a Missa de acordo com o usus antiquior é agora inquestionável. Deveria ser permitido celebrá-la em vernáculo? Do ponto de vista daqueles que há muito estão vinculados à forma tradicional da Missa, tal sugestão poderia parecer uma ameaça ao uso do latim, que tem sido uma parte significante desse vínculo.

Se olharmos para a questão “por outro lado” por assim dizer, a proposta pode fazer mais sentido. Mais do que comprometer qualquer celebração atual do usus antiquior em toda a sua pureza em latim – e sem de forma alguma desencorajar os sacerdotes a aprender latim de maneira a celebrar o usus antiquior –, é provável que, pelo menos para o momento, há muitos sacerdotes que não conseguem celebrar o usus antiquior porque não têm conhecimento de latim. O valor da forma antiga da Missa não reside apenas no uso do latim. O ritual, as orações silenciosas do sacerdote, o ciclo de leituras, o calendário dos tempos e muitos outros elementos oferecem um caminho em direção à ars celebrandi que o Papa Bento XVI procura recuperar na celebração ordinária, do dia-a-dia, da Missa. Se fosse dada aos sacerdotes, que apenas celebram Missas em inglês na forma nova, a opção de celebrar em inglês na forma antiga, muitos dos que estão preocupados com a reverência e o sentido do sagrado na Liturgia seriam desafiados pela possibilidade de considerar o que foi perdido, e encorajados a melhorar sua celebração da forma nova pela familiaridade com a forma antiga.



Sobre o autor

Pe. Timothy Finigan obteve graduação de primeira classe em filosofia e psicologia em Oxford e depois estudou teologia em Roma, onde se especializou em patrística e história da teologia, obtendo também um diploma summa cum laude em Letras Latinas sob Pe. Reginald Foster. Ordenado em 1984, tem exercido seu ministério sacerdotal trabalhando em paróquias na Arquidiocese de Southwark. Juntamente com isso, ministra aulas e é escritor. Atualmente ensina teologia sacramental no Seminário St. John, Wonersh, e teologia dogmática em St. Hugh’s Charterhouse, Parkminster. Foi editor da revista Faith Magazine por oito anos e continua a contribuir com a publicação. Suas publicações recentes incluem artigos sobre a Imaculada Conceição para os Franciscanos da Imaculada, e artigos para a Humanae Vitae e o Gospel of Life. Escreve regularmente uma coluna para o Catholic Herald e o blog “The Hermeneutic of Continuity”. Tem escrito e dado aulas sobre a Liturgia Romana tradicional. Após o Summorum Pontificum, sua paróquia foi uma das primeiras a ter o usus antiquior celebrado todos os domingos como parte da agenda paroquial.

Contato: blackfencatholic@gmail.com Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.


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[i] Ver: [acessado em 14 de Fevereiro de 2011].

[ii] Sagrada Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, Institutio Generalis Missalis Romani (d’ora em diante: IGMR), (Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2002 (2000)), §274. ‘Post ostensionem hostiae, post ostensionem calicis et ante Communionem’.

[iii] Cf. Sagrada Congregação para os Ritos, ‘Segunda Instrução sobre a aplicação organizada da Constituição sobre a Liturgia’, res Abhinc Annos de 4 de Maio de 1967, III, 7. Ver Acta Apostolicae Sedis, (Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1967), 59, pp. 442–448. ‘Post elevationem hostiae et post elevationem calicis’ (p. 444).

[iv] Notitiae (Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1978), 14: 2, pp. 301–302. ‘Ubi rubricae Missalis Pauli VI nihil dicunt aut parum dicunt singillatim in nonnullis locis, non ideo inferendum est quod oporteat servare ritum antiquum. Proinde, non sunt iterandi gestus multiplices atque implexi turificationis iuxta praescripta Missalis prioris’.

[v] Ritus Servandus in Celebratione Missae, I, 3. (Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana) ’Tum Alba induitur, caput submittens, deinde manicam dexteram brachio dextero, et sinistram sinistro imponens’.

[vi] IGMR, §119. ‘Nisi ob ipsius albae formam non exigantur’.

[vii] Papa Bento XVI, Carta aos Bispos de 7 de Julho de 2007, por ocasião da publicação da Carta Apostólica sob a forma de Motu Proprio Summorum Pontificum sobre o uso da Liturgia Romana anterior à reforma de 1970.

[viii] Bento XVI, motu proprio de 7 de Julho de 2007, Summorum Pontificum, em Acta Apostolicae Sedis, 99, §1. ‘Hae duae expressiones “legis orandi” Ecclesiae, minime vero inducent in divisionem “legis credendi” Ecclesiae; sunt enim duo usus unici ritus romani’.

[ix] Cf. por exemplo, Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, Instructio de quibusdam normis circa cultum mysterii eucharistici (Instrução “A respeito do culto do mistério Eucarístico”) Inaestimabile Donum, de 3 de Abril de 1980, em Acta Apostolicae Sedis, 72, pp. 331–343; Instructio: de quibusdam observandis et vitandis circa sanctissimam Eucharistiam (Instrução “Sobre certas questões a serem observadas ou evitadas em relação à Santíssima Eucaristia”) Redemptionis Sacramentum, de 25 de Março de 2004, em Acta Apostolicae Sedis, 96, pp. 549–601.

[x] Papa João Paulo II, Carta Apostólica de SS. Eucharistiae Mysterio et Cultu (sobre o mistério e o culto da Eucaristia) Dominicae Cenae, de 24 de Fevereiro de 1980, em Acta Apostloicae Sedis, 72, pp. 113–148. ‘Extremam vero iam manum imposituri hisce considerationibus Nostris, velimus veniam petere — nomine quidem Nostro omniumque vestrum, Venerabiles ac Dilecti in episcopate Fratres, — universarum illarum rerum quae, ob quasvis causas quamlibetque ob humanam debilitatem, impatientiam, neglegentiam vel etiam propter exsecutionem interdum imperfectam, singularem, falsam praescriptorum Concilii Vaticani II, ingerere potuerunt scandalum vel difficultatem circa doctrinae interpretationem et venerationem huic excelso Sacramento debitam’ (p. 145).

[xi] Cf. Papa João Paulo II, Dominicae Cenae (1980), §12, p. 144. ‘Non licet velut “possessorum” qui libere decernat de liturgico textu et ritu sacro quasi de suo peculiari bono’.

[xii] Há uma escola no estudo moderno da Liturgia que nega a existência de um “Ofertório” na forma nova da Missa. Tomarei a visão oposta e presumirei que se há um canto no Gradual moderno chamado Offertorium e uma oração chamada Super Oblata no fim, então podemos presumir que alguma coisa foi oferecida.

[xiii] IGMR, §275a. “Inclinatio capitis fit cum tres Divinae Personae simul nominantur, et ad nomen Iesu, beatae Mariae Virginis et Sancti in cuius honorem celebrator Missa”.

[xiv] Texto original do Missale Romanum Editio Typica Tertia (Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2002), p. 514, n. 23. “Sacerdos, stans ad altare, accipit patenam cum pane, eamque ambabus manibus aliquantulum elevatam super altare tenet, submissa voce dicens: [...] Si vero cantus ad offertorium non peragitur, sacerdoti licet haec verba elata voce proferre; in fine populus acclamare potest: Benedíctus Deus in saecula”.

[xv] Joseph Cardinal Ratzinger, The Spirit of the Liturgy, trad. de Jana Almeida Olsansky (Prior Velho: Paulinas, 2006 (2001)), pp. 158–159.



Fonte: Presbitéros