quarta-feira, 13 de abril de 2011

DOSSIÊ LITURGIA UMA BABEL PROGRAMADA

Por Andrea Tornielli

A substituição do latim pelo vernáculo na liturgia da Igreja católica foi considerada por muitos uma medida infeliz e saudada por outros como um “aggiornamento” necessário para favorecer a
participação do povo. Todavia, não foi uma decisão do Concílio Ecumênico Vaticano II. O latim ainda é a língua oficial da Igreja, ou pelo menos foi durante dezoito séculos. Cinco anos depois do Concílio, não havia mais sinal dele nos livros litúrgicos católicos. A eliminação total da língua dos antigos romanos aconteceu quase à surdina e em alguns casos contra a vontade do Papa Paulo VI, o qual estabeleceu que ela deveria permanecer ao lado do vernáculo no missal. Esta é a história da reforma e dos protagonistas de um período que marcou profundamente a vida da Igreja.

A VONTADE DE JOÃO XXIII
“A língua latina, que podemos considerar verdadeiramente católica (...) é o vínculo adequado através do qual a época atual da Igreja está admiravelmente unida ao passado e ao futuro.” O Papa João XXIII quis revestir a assinatura da Constituição Apostólica Veterum sapientiae com a maior solenidade.
No dia 22 de fevereiro de 1962, colocou o selo no documento que deveria salvaguardar o latim como língua “imutável” e “universal” da Igreja e da liturgia católica no altar da Confissão, sobre o túmulo de São Pedro, na presença de quarenta cardeais. O documento, promulgado sete meses antes da abertura do Concílio, foi rapidamente esquecido, mas os bispos reunidos em Roma decidiram levá-lo em consideração. A Constituição Sacrosanctum concilium, sobre a liturgia, diz: “Seja conservado o uso da língua latina, salvo o direito particular”. (nº 36) e “Cuide-se para que os fiéis saibam recitar e cantar juntos, inclusive em língua latina, as partes do Ordinário da missa que lhes cabem”. (nº 54). O mesmo critério é usado para a Liturgia das Horas: “Segundo a secular tradição do rito latino, seja conservada a língua latina no Ofício Divino para os clérigos” (nº 101). Em 1964, o liturgista Rinaldo Falsini escreveu no seu comentário à Constituição conciliar: “O Concílio não podia pôr em discussão o princípio da manutenção da língua latina para os ritos que tomavam o nome daquela língua. Atualmente, um abandono integral do latim, em vista da vastidão do patrimônio litúrgico, seria impensável e irrealizável”.
Falsini diz também que a luta contra o uso da língua latina na missa foi aberta pela reação protestante. Formalmente, a língua oficial da Igreja Católica continuava a ser o latim, inclusive nas intenções do Vaticano II. No dia 3 de setembro de 1978, o papa João Paulo I pronunciou em latim a primeira parte da homilia da missa solene de início do pontificado. Em seguida, explicou: “Quisemos iniciar esta nossa homilia em latim porque, como se sabe, esta é a língua oficial da Igreja, da qual exprime de forma palmar e eficaz a universalidade e a unidade”.
Todavia, o latim foi substituído pelo vernáculo e desapareceu dos livros litúrgicos apenas cinco anos depois do encerramento do Concílio. O desaparecimento foi repentino e aparentemente não era intenção dos Padres conciliares, que votaram quase por unanimidade (2.147 votos a favor e 4 contra) um documento sobre a liturgia que previa a manutenção do latim e dava espaço ao vernáculo “especialmente nas leituras, nas homilias, em algumas orações e nos cantos”. A preocupação de João XXIII e do Concílio era clara: a permanência do latim garantia a solidez da doutrina expressa. Como foi possível “deslatinizar” inteiramente o missal e o breviário?

MISSÃO SECRETA?
“Caro Buan, comunicamos o encargo que o Conselho dos Irmãos estabeleceu para ti, de acordo com o Grão-Mestre e os Príncipes Assistentes ao Trono, e te obrigamos (...) a difundir a descristianização mediante a confusão dos ritos e das línguas e de colocar padres, bispos e cardeais uns contra os outros. A Babel lingüística e ritual será a nossa vitória, como a unidade lingüística e ritual foi a força da Igreja (...) Tudo deve acontecer no prazo de dez anos”. (14 de julho de 1964).
“Grão-Mestre incomparável (...) a dessacralização prossegue rapidamente. Foi publicada uma outra Instrução, que entrou em vigor no dia 29 de junho p.p. Já podemos cantar vitória, porque a língua latina vulgar é soberana em toda a liturgia, inclusive nas partes essenciais (...) Foi dada máxima liberdade de escolha entre os vários formulários, à criatividade particular e ao... caos! (...) Em suma, com esse documento creio ter disseminado o princípio da máxima libertinagem, segundo as vossas disposições. Lutei duramente contra os meus inimigos da Congregação para os Ritos e tive que recorrer a toda a minha astúcia para que o Papa a aprovasse. Por sorte, encontramos o apoio dos amigos e irmãos da Universa Laus, que são fiéis. Agradeço pela soma enviada e esperando vos ver em breve, vos abraço. Vosso Irmão Buan” (2 de julho de 1967).
São trechos de duas cartas. A primeira teria sido enviada a monsenhor Annibale Bugnini (nome em código Buan) pelo Grão-Mestre da maçonaria. A segunda seria a resposta do liturgista ao líder das Lojas, comunicando o cumprimento da missão bem antes do prazo previsto. Esses documentos – gravemente difamatórios para Bugnini, que sempre negou ter mantido contatos com a maçonaria – são verdadeiros ou falsos? É impossível dizer, visto que se trata de cartas datilografadas e fotocopiadas por um misterioso “espião” que em seguida as teria entregue a alguns bispos e cardeais amigos, entre os quais o arcebispo de Gênova, Giuseppe Siri, e o prefeito do Selo Apostólico, Dino Staffa. Se são autênticas, revelam a existência de um “projeto” para destruir a doutrina e da liturgia católica por dentro. Podem também ser falsificações produzidas por alguém interessado em criar “facções” rivais na Cúria. O texto das cartas, de fato, é muito imediatista e grosseiro. Em todo caso, as cartas existem e os resultados das reformas de Bugnini concordam plenamente com os objetivos que fixam.

LITURGIAS ESTRANGEIRAS
O padre Annibale Bugnini foi nomeado secretário da comissão litúrgica criada por Pio XII para reformar o ritual da Semana Santa logo depois da Segunda Guerra Mundial. O seu espírito reformista no campo litúrgico já era conhecido. Em 1944, Bugnini pedira ao padre Arrigo Pintonello, então capelão militar, para traduzir alguns textos de autores católicos e protestantes alemães sobre a renovação litúrgica. Esse fato, confirmado por dom Pintonello (hoje arcebispo emérito de Latina, Itália) a 30Dias, pode mostrar que a reforma realizada sob a direção do Consilium ad exaquandam Constitutionem de Sacra Liturgia – do qual Bugnini foi secretário e sobre o qual exercia uma inegável autoridade – tinha raízes meditadas e preparadas há longo tempo.
Bugnini contou detalhadamente história desse período no livro A Reforma Litúrgica 1948-1975. O livro é uma autodefesa póstuma com a qual o bispo, “exilado” no Irã por Paulo VI, descreve a sua obra e diz que todas as decisões sobre as grandes mudanças litúrgicas foram tomadas pelo Papa em pessoa. “Eu fui apenas um executor fiel da vontade de Paulo VI e do Concílio”.

O CONCÍLIO
No dia 16 de outubro de 1962, os Padres conciliares foram informados que a liturgia seria o primeiro tema a ser discutido naquela sessão. O esquema fora preparado por uma comissão presidida pelo cardeal Gaetano Cicognani, que o aprovou no dia 1º de fevereiro de 1962, quatro dias antes de morrer.
Todavia, o principal responsável pela redação era o secretário Annibale Bugnini. O sucessor de Cicognani foi o cardeal espanhol Arcádio Larraona. Bugnini diz que Larraona era “um grande jurista de tendência conservadora”. A nomeação de Larraona foi divulgada no mesmo dia da promulgação da Veterum sapientiae, e muitos viram nessa coincidência um aviso aos liturgistas que pretendiam favorecer a introdução do vernáculo. O Papa havia criado uma comissão central de preparação do Concílio, cuja tarefa era supervisionar e corrigir o trabalho das comissões preparatórias. O texto de Bugnini foi muito modificado e em seguida publicado juntamente com os esquemas que deveriam ser discutidos pelo Concílio, aprovados por João XXIII no dia 13 de julho de 1962. O próprio Bugnini diz quais foram as correções feitas no texto: “A descentralização tão desejada foi atenuada: as autoridades eclesiásticas locais poderiam somente fazer propostas à Santa Sé (...) não fazia nenhuma menção ao uso do vernáculo na celebração do Ofício Divino pelos sacerdotes.” O padre Bugnini foi o único secretário de uma comissão preparatória que não foi confirmado no cargo de uma comissão conciliar: o cardeal Larraona o afastou. Bugnini foi também exonerado da cátedra de Liturgia no Pontifício Instituto Pastoral da Universidade Lateranense. De nada adiantaram as tentativas dos cardeais Giacomo Lercaro e Augustin Bea junto ao papa João XXIII para reintegrá-lo. Bugnini diz que esse foi o seu “primeiro exílio”. Um cardeal que participou diretamente desses fatos declarou a 30Dias: “Bugnni foi afastado porque quis interferir em coisas que não eram de sua competência e sobretudo porque não era idôneo para o cargo”.
Durante o Concílio, alguém transcreveu em duas colunas o texto aprovado pelo Papa e acrescentou as variações em relação ao primeiro texto, para que os Padres “vissem o que acontecera” (Bugnini, p.38). Assim, os bispos puderam ler a versão oficial, assinada pelo Papa, e o texto anterior, não emendado. O debate teve início no dia 22 de outubro de 1962. O primeiro orador, o cardeal Joseph Frings, pediu que os Padres recebessem o texto original da comissão preparatória, do qual, na sua opinião, tinham sido eliminados muitos pontos importantes e inovadores. O pedido de Frings se baseava em um relatório escrito pelo bispo de Linz (Áustria), dom Franz Zauner, que fora membro da comissão preparatória e possuía o texto original. Um dos pontos controvertidos, citados por Zauner, era a seção intitulada “Língua Litúrgica”. A versão não corrigida autorizava as conferências episcopais a “determinar as condições e as modalidades nas quais o vernáculo podia ser utilizado na liturgia”. O bispo austríaco se opunha também à manutenção do latim na recitação do Ofício Divino.
O pedido de Frings,ao qual aderiu também o cardeal Giovanni Battista Montini, foi acolhido e os textos emendados foram reintegrados. Os cardeais Antonio Bacci, Alfredo Ottaviani e Dino Staffa, e o bispo Pietro Parente eram contra a reintegração. A Constituição Apostólica Sacrosanctum Concilium foi aprovada e promulgada solenemente no dia 4 de dezembro de 1963 por Montini, que sucedera a João XXIII. As diretrizes do esquema preparatório aprovado por João XXIII eram ainda mais restritivas que as aprovadas pelo Concílio, mas nos anos seguintes, graças a contínuas correções e adaptações, as determinações do Vaticano II foram sendo superadas, até que o latim desapareceu totalmente dos missais e dos breviários dos sacerdotes.

O CONSILIUM
No seu livro, Bugnini dá uma explicação diferente para o trecho da Sacrosanctum concilium que afirma: “Seja conservado o uso da língua latina salvo direito particular”. “O problema mais sentido era a língua”. Problema árduo e delicado, que tinha dois aspectos cheios de interrogações: de um lado a tradição da Igreja latina e as vantagens do uso de uma língua única, técnica do ponto de vista litúrgico e jurídico; do outro, o enfraquecimento da incisividade da mensagem e das realidades divinas, devido a uma língua incompreensível para muitos. Tratava-se de renunciar em boa parte ao latim, patrimônio secular da Igreja,ou de reduzir a eficácia mais natural, espontânea e expressiva dos sinais, como a língua.
Entre essas duas perspectivas, o Concílio não hesitou em introduzir o vernáculo na liturgia”. A reforma teve início imediatamente. Na manhã de 3 de janeiro de 1964, o padre Bugnini foi convocado pelo cardeal Amleto Cicognani, Secretário de Estado, o qual comunicou-lhe que o Santo Padre decidira nomeá-lo secretário da Comissão para a atuação da Constituição conciliar, Um bispo romano, amigo do cardeal Larraona, declarou a 30Dias: “O cardeal Lercaro disse ao Papa que tinha sido uma grave injustiça não nomear Bugnini para a secretaria da comissão conciliar. Por isso, Paulo VI, que era particularmente sensível a esse tema, decidiu reintegrá-lo". Assim nasceu o Consilium ad exaquandum Constitutionem de Sacra Liturgia. Paulo VI nomeou o arcebispo de Bolonha, Giacomo Lercaro, para presidi-lo. O cardeal Larraona era um dos membros nomeados pelo Papa. As primeiras normas de aplicação da Sacrosanctum concilium foram promulgadas no dia 25 de janeiro de 1964. A redação esteve a cargo de Lercaro, Bugnini e de outros especialistas escolhidos por Bugnini e, em seguida da Congregação para os Ritos. No fim, o texto foi entregue a Paulo VI. O documento (motu próprio Sacram liturgiam), permitia o uso do vernáculo na leitura e no Evangelho das missas de matrimônio e definia melhor a competência das autoridades eclesiásticas locais em relação aos idiomas nacionais.
As expectativas dos progressistas foram frustradas. Bugnini observa: “O motu próprio concedia pouco em comparação com o muito que a Constituição conciliar permitia (...) A acolhida do tão esperado documento foi festiva, mas se transformou em polêmica assim que os liturgistas e pastores receberam o texto (...) O documento era criticado principalmente porque limitava o direito das conferências episcopais aprovarem traduções”. O protesto da ala progressista do episcopado europeu foi imediato. O bispo Zauner escreveu: “Nós bispos e Padres conciliares estamos angustiados porque depois de tão breve tempo depois da aprovação da Constituição, a Cúria ou setores dela insistem no centralismo e combatem a descentralização com todos os meios”.
O Consilium continuou a trabalhar e os seus membros elaboraram rapidamente a Instrução Inter Oecumenici, publicada no dia 26 de setembro de 1964. As novas normas entraram em vigor no dia 7 de março de 1965, primeiro Domingo da Quaresma, “uma data histórica e um marco para a reforma litúrgica (...) o início do processo de aproximação da liturgia das assembléias participantes e da sua mudança de aspecto, depois de séculos de uniformidade intocável” (Bugnini, p.109). Estes eram os critérios para a introdução do vernáculo: podia ser usado nas leituras, na epístola e no Evangelho, na oração dos fiéis, no Kyrie, no Glória, no Credo, no Sanctus e no Agnus Dei, nos cantos, nas aclamações e saudações, no Pai Nosso, na coleta e na oração sobre as oferendas. Para permitir a preparação de traduções nas diversas línguas com uma certa tranqüilidade, foi admitido o uso provisório das traduções dos missais já utilizados pelos fiéis. Bugnini comenta: “O decreto típico fazia muitas concessões, mas a missa com latim e vernáculo era híbrida e incoerente”. Assim, iniciou-se a batalha pela tradução do prefácio e do cânon. A exigência de ter toda a liturgia na língua nacional se fez sentir sobretudo na Holanda. O comunicado que permitia a extensão do vernáculo foi enviado às conferências episcopais no dia 10 de agosto de 1967. O padre Thierry Maertens, um liturgista favorável às inovações e que participara do Concílio como especialista, escreveu naquela época: “Nada na Constituição conciliar sobre a liturgia fazia supor que um documento poderia permitir, depois de quatro ou cinco anos, a proclamação do cânon em vernáculo”.

TEXTO LATINO AO LADO
O número 57 da Inter Oecumenici previa que os missais e breviários em vernáculo deveriam conter também o texto latino. Essa medida, introduzida pela Congregação para os Ritos, pretendia salvaguardar o patrimônio lingüístico latino na liturgia e sobretudo permitir um confronto contínuo com o texto original. O primeiro missal traduzido foi publicado pela Conferência Episcopal dos Estados Unidos.
O Roman Missal - Missale Romanum não continha o texto latino, apesar o título bilíngüe. Os editores puderam provar que o livro já tinha sido quase completamente impresso quando a Instrução foi publicada. Todavia, a vontade de Paulo VI nesse ponto era clara. No dia 13 de julho de 1967, a Secretaria de Estado pediu que o Consilium publicasse um novo documento determinando que “os missais quotidiano e festivo tenham sempre, com caracteres menores, o texto latino ao lado da tradução”. O comunicado às Conferências Episcopais, de 10 de agosto de 1967, dizia: “É desejo do Santo Padre que os missais festivos e quotidianos, em edição integral ou parcial, tenham sempre ao lado da versão em língua
latina vulgar o texto latino em duas colunas ou na página lateral, e não em fascículos e livros separados”.
Mas o desejo e as disposições de Paulo VI não puderam ser postas em prática. Diz Bugnini: “O princípio, bom em si, encontrava enormes dificuldades: volume excessivo dos livros litúrgicos, dificuldades técnicas sobretudo em países que não usam o alfabeto latino (...). Por isso, o Santo Padre estabeleceu que, pelo menos, no apêndice do missal se encontrasse, obrigatoriamente, uma parte latina com o ordinário da missa, as orações eucarísticas com seus prefácios, alguns formulários de missas para os tempos litúrgicos.
O comunicado enviado aos presidentes das Conferências Episcopais (10 de novembro de 1969) recomendava que em todas as igrejas houvesse uma cópia do missal em língua latina e nos santuários também os textos latinos das missas próprias”.
A história da Liturgia das Horas foi igual. Os primeiros pedidos para a introdução do vernáculo chegaram ao Papa em 1965. Na epístola Sacrificium laudis, endereçada aos Moderatores generales religionum clericarium chori obligatione adstrictarum (15 de agosto de 1966), Paulo VI diz: “Pelo bem que queremos a todos vós, não queremos permitir aquilo que pode causar uma queda, provocar danos e certamente seria motivo de dor e aflição para toda a Igreja. Deixai que nós defendamos os vossos interesses, mesmo contra a vossa vontade. A mesma Igreja que, para utilidade pastoral, ou seja, para o bem dos fiéis que não conhecem o latim, permitiu a liturgia em vernáculo, vos deu o mandato de conservar a dignidade, a beleza e a gravidade do ofício coral, tanto para a língua como para o canto. Por isso, aceitai de bom grado e sinceramente a recomendação, sugerida não por um amor excessivo pelos antigos usos mas pela caridade paterna por vós, e aconselhado por amorosa atenção pelo culto divino”.
Apesar disso, a Secretaria de Estado concedeu um adiamento para “casos particulares” no dia 6 de junho de 1967: depois, com passos seguintes, chegou-se à tradução integral da liturgia das horas.

A REVIRAVOLTA
Com as concessões e os adiamentos – introduzidos por influência dos pedidos provenientes de algumas Conferências Episcopais – as indicações do Concílio foram superadas. Paulo VI advertiu contra o risco do abandono total do latim. No dia 27 de novembro de 1967, o papa disse: “Perdemos a língua dos séculos cristãos, tornamo-nos quase intrusos e profanos no recinto literário da expressão sacra, e assim perderemos grande parte daquele estupendo e incomparável fato artístico que é o canto gregoriano.
Temos, sim, razão para nos lamentar e quase para nos perturbar. O que poderíamos usar para substituir essa língua Angélica? É um sacrifício de valor inestimável (...) O latim colocava em nossos lábios as orações dos nossos antepassados e nos dava o conforto de fidelidade ao nosso passado espiritual, que nos atualizávamos para transmitir às gerações futuras”. Pouco mais adiante, o Papa afirmou que esse preço deveria ser pago: “Vale mais a inteligência da oração que as vestes ricas e vetustas que a envolvem. Vale mais a participação do povo, deste povo moderno, ávido de palavra clara, inteligível e traduzível na sua conversação profana”.
O relacionamento entre o Papa Paulo VI e o Consilium não foi sempre bom. A primeira ocasião de conflito foi determinada por aquilo que Bugnini chama “uma tentativa de reforçar a organização operacional do Consilium”. No dia 22 de setembro de 1966, Lercaro conseguiu fazer com que o Papa estudasse uma hipótese de estatuto e um regulamento interno. O texto do estatuto indicava a natureza do Consilium e as suas atribuições; o regulamento, por sua vez, estabelecia o procedimento do trabalho e dos grupos de estudo. Assim, seria criado um organismo fixo, com amplos poderes no campo litúrgico.
Depois que foi aprovado pelo Consilium, foi submetido a Paulo VI. Antes disso, o Papa recebeu um texto que denunciava o risco de conceder poderes excessivos a um organismo por natureza temporário, colocando a Igreja em estado de Concílio permanente e “sufocando a Congregação para os Ritos (...) convertendo-a em um mero instrumento vacilante e formal. O Consilium não seria um organismo sob a jurisdição do Santo Padre, como as demais Congregações, mas teria um poder absoluto e superior ao de qualquer Congregação”. O texto pedia também que o Papa evitasse um outro fato consumado. Paulo VI deu crédito a essas considerações (“Como foi possível crer em afirmações tão graves e distorcidas sempre foi um mistério”, comenta Bugnini em seu livro), convocou Bugnini para uma audiência e lhe disse que o estatuto era um caso encerrado.
Depois da reforma da Cúria Romana (constituição apostólica Regimini Ecclesiae), o Papa decidiu definir melhor a competência da Congregação dos Ritos e do Consilium. No dia 9 de janeiro de 1968, aceitou a demissão do cardeal Lercaro e pediu que o cardeal Larraona se demitisse do cargo de Prefeito da Congregação para os Ritos. No dia 8 de maio, o Papa promulgou a Constituição Sacra Rituum Congregatio, com a qual dividia a antiga Congregação em duas: uma para o Culto Divino (na qual se inseria o Consilium) e outra para as Causas dos Santos. O cardeal Benno Gut foi nomeado presidente da Congregação para o Culto Divino, com Bugnini como secretário. Depois da morte de Gut (8 de dezembro de 1970), sucederam-se na Congregação os cardeais Artur Tabera e James Knox (março de 1974). No dia 16 de julho de 1975, a Constituição apostólica Constans nobis studium unia a Congregação para os Sacramentos à Congregação para o Culto Divino, da qual se tornou uma seção. “Que motivos levaram o Papa a essa decisão tão drástica, impensada e pesada diante da Igreja?”, diz Bugnini, que, em seguida responde revelando que, na sua opinião, tudo se deve às vozes tendenciosas que o acusavam de ser membro da maçonaria. “No final de agosto, um cardeal nem um pouco entusiasta da reforma litúrgica revelou a existência de um dossiê que ele mesmo viu (ou levou) sobre a mesa do Papa, comprovando a filiação de monsenhor Bugnini à maçonaria”, escreve. Entre os cardeais que deram crédito às notícias sobre eclesiásticos inscritos na maçonaria estavam Staffa e Siri.
Depois da fusão das duas Congregações, o artífice da reforma litúrgica perdeu o lugar. Paulo VI o enviou como pró-núncio apostólico no Irã, onde desenvolveu uma apreciada atividade diplomática até a morte, ocorrida na Itália no dia 3 de julho de 1982, poucos dias depois de uma delicada operação cirúrgica. O cardinalato seria quase obrigatório; todavia, o Papa tomou uma decisão que equivalia a uma autêntica desaprovação da obra de Bugnini. No dia 3 de agosto de 1975, a revista italiana L’Expresso publicou um artigo intitulado “In latino est veritas”, que dizia: “A reforma litúrgica foi paralisada e os seus maiores inspiradores colocados de lado. A Cúria exulta”. A remoção de Bugnini pode não estar ligada aos rumores (e aos documentos verdadeiros ou falsos) que o davam como membro da maçonaria.
Um colaborador direto do cardeal Giovanni Benelli, então substituto da Secretaria de Estado, disse a 30Dias que o motivo foi outro. “O Papa e Benelli decidiram que era preciso dar um sinal claro e severo: não concordavam mais com o contínuo e, muitas vezes desenfreado, reformismo ao qual o monsenhor Bugnini e o “seu Conselho continuavam a submeter a Igreja”.

O PAPA E O SECRETÁRIO
“Paulo VI tinha a humildade dos santos, mas, muitas vezes, confiava demais nos outros e era influenciado pelos especialistas”, diz a 30Dias o cardeal Jacques Martin, que foi presidente da Casa Pontifícia no tempo de Paulo VI. “Lembro-me que no dia seguinte à reforma do breviário, eu disse ao Santo Padre: “Viu que eliminaram a oitava de Pentecostes?” e ele respondeu: ‘O senhor também viu? Sinto muito. Quer dizer que seremos aliados’. Escrevi a monsenhor Bugnini pedindo explicações, e depois de ter recebido a resposta ele me disse que as comissões estavam de acordo quanto à eliminação e que ele não pretendia se opor”.
Muitas testemunhas afirmam que o secretário do Consilium exercia uma notável influência sobre o Papa. Os cardeais Gaetano Cicognani e Benno Gut disseram várias vezes que a reforma e os trabalhos do Consilium eram dirigidos por Bugnini, que tinha livre acesso ao escritório do Papa e podia mostrar-lhe diretamente os documentos preparados pelos especialistas. Um cardeal italiano disse a 30Dias: “Um dia, o cardeal Gut me disse desconsolado que não podia fazer nada: tudo acontecia entre Bugnini e o Papa”. Todavia, a verdadeira mente da reforma e da sua realização era o grupo progressista dirigido pelo cardeal Döpfner. No prefácio da autodefesa póstuma, Bugnini recorda que o primeiro período da reforma litúrgica foi “um tempo sereno e ágil de um pontificado que viu um maravilhoso florescer de obras”.
Depois desse período, alguma coisa se desgastou irremediavelmente. O afastamento de Bugnini foi decidido pelo mesmo Paulo VI que confiara nele depois do Concílio. A reforma podia ser considerada acabada.

AS NORMAS CONCILIARES MAIS DESOBEDECIDAS
1 – O Sacrossanto Concílio propõe-se fomentar sempre mais a vida cristã entre os fiéis.
4 – Enfim, obedecendo fielmente à Tradição, o Sacrossanto Concílio declara que a Santa Mãe Igreja considera todos os ritos legitimamente reconhecidos com igual direito e honra (...) e deseja que, onde for necessário, sejam cuidadosa e integralmente revistos, conforme o espírito da sã tradição.
11 – Por isso, é dever dos sagrados pastores vigiar que, na ação litúrgica, não só se observem as leis para a válida e lícita celebração, mas que os fiéis participem dela com conhecimento da causa, ativa e frutuosamente.
13 – Os piedosos exercícios do povo cristão, conquanto conformes às leis e normas da Igreja, são encarecidamente recomendados, sobretudo quando são feitos por da Sé Apostólica.
21 – A Santa Mãe Igreja deseja com empenho cuidar da reforma geral de sua Liturgia, a fim de que o povo cristão na Sagrada Liturgia consiga com mais segurança graças abundantes. Pois a Liturgia consta de uma parte imutável, divinamente instituída, e de partes suscetíveis de mudança. Estas, com o correr dos tempos, podem ou mesmo devem variar, se nelas se introduzir algo que não corresponda bem à natureza íntima da própria Liturgia, ou se estas partes se tornarem aptas.
22 – A regulamentação da Sagrada Liturgia é de competência exclusiva da autoridade da Igreja. Esta autoridade cabe à Santa Sé Apostólica e, segundo as normas do Direito, ao Bispo. (...) Portanto, jamais algum outro, ainda que sacerdote, acrescente, tire ou mude por conta própria qualquer coisa à Liturgia.
23 – (...) Afinal não se façam inovações, a não ser que a verdadeira e certa utilidade da Igreja o exija e tomando a devida cautela de que as novas formas de um certo modo brotem como que organicamente daquelas que já existiam.
28 – Nas celebrações litúrgicas, cada qual, ministro ou fiel, ao desempenhar a sua função, faça tudo e só aquilo que pela natureza da coisa ou pelas normas litúrgicas lhe compete.
34 – As cerimônias resplandeçam de nobre simplicidade, sejam transparentes por sua brevidade e evitem as repetições inúteis, sejam acomodadas à compreensão dos fiéis e, em geral, não careçam de muitas explicações.
35 – (...) nas próprias cerimônias sejam previstos, se necessário for, breves esclarecimentos (...) com termos prefixados.
36 – Salvo o direito particular, seja conservado o uso da Língua Latina nos Ritos latinos. (...) permite-se dar-lhe (à língua vernácula) um lugar mais amplo, principalmente nas leituras e admoestações, em algumas orações e cânticos.
54 – Todavia, providencie-se que os fiéis possam juntamente rezar ou cantar em língua latina as partes do Ordinário que lhe competem.
101 – Segundo a tradição secular do rito latino, seja conservada a língua latina no Ofício Divino para os clérigos. Concede-se, porém, ao Ordinário a faculdade de permitir, caso por caso, o uso de uma tradução vernácula, feita segundo a norma do art. 36, aos clérigos para os quais o uso da língua latina é um grave impedimento na recitação devido ao Ofício.
116 – A Igreja reconhece o canto gregoriano como próprio da liturgia romana. Portanto, em igualdade de condições, ocupa o primeiro lugar nas ações litúrgicas.
121 – Os textos destinados aos cantos sacros sejam conformes à doutrina católica, e sejam tirados principalmente da Sagrada Escritura e das fontes litúrgicas.

CRONOLOGIA DE UMA EXTINÇÃO
Os documentos sobre o problema da liturgia latina. As datas que marcaram a deslatinização, apesar das intervenções de Paulo VI. 22 de novembro de 1947. Encíclica Mediator Dei, de Pio XII. O Pontífice afirma que o latim “é um nobre e claro sinal de unidade e um antídoto eficaz contra a corrupção da pura doutrina”, embora admita que em alguns casos é possível conceder o uso do vernáculo.
22 de fevereiro de 1962. Sete meses antes da abertura do Concílio Vaticano II, o papa João XXIII promulga a Constituição apostólica Veterum sapientiae.Partindo de um documento de Pio XII, o papa afirma que a Igreja, pela sua natureza, precisa de uma língua “universal, imutável e não vulgar”. O documento foi assinado com grande solenidade na Cátedra de São Pedro, diante de quarenta cardeais.
4 de dezembro de 1963. Paulo VI promulga a Constituição conciliar Sacrosanctum Concilium, sobre a liturgia. O texto, aprovado por unanimidade pelos Padres conciliares, prevê que o latim seja conservado e concede o uso dos idiomas nacionais nas leituras e nas partes da missa repetidas pelo povo. O latim deve ser mantido na Liturgia das Horas para os sacerdotes.
25 de janeiro de 1964. Motu próprio Sacram liturgiam. É o primeiro documento de Paulo VI que regulamenta a aplicação da Sacrosanctum Concilium. O vernáculo é admitido somente nas leituras e no Evangelho das missas de matrimônio. A ala progressista reage imediatamente. Segundo muitos bispos, as concessões são “insuficientes”.
26 de setembro de 1964. Instrução Inter Oecumenici. O vernáculo pode ser introduzido nas leituras e no Evangelho, na oração dos fiéis, no Kyrie, no Glória, no Credo, no Sanctus e no Agnus Dei; nos cantos, nas aclamações e nas saudações, no Pai Nosso e na oração sobre as ofertas. A Instrução preparada pelo Consilium é aprovada pelas Conferências Episcopais que insistiam na introdução do vernáculo na missa, que se torna, porém, “um híbrido incoerente” (Bugnini).
31 de janeiro de 1967. Paulo VI concede ad experimentum, por indicação do Consilium, o uso do vernáculo no cânon da missa.
21 de junho de 1967. Carta circular do Consilium aos presidentes de Conferências Episcopais, assinada pelo cardeal Giacomo Lercaro. “Depois do ponto de partida e da extensão da língua falada no prefácio, esta é a última etapa para a gradual extensão do vernáculo. Não se deve passar freqüentemente de uma língua a outra na celebração; isso será certamente bem recebido (...) A tradução deve ser literal e integral. Os textos devem ser tomados como são, sem mutilações ou simplificações (...) Não é oportuno queimar etapas. Quando chegar o momento de novas criações, não será mais necessário submeter-se às restrições da tradução literal”.
10 de agosto de 1967. Comunicado do Consilium às Conferências Episcopais sobre as traduções do cânon romano. Quatro anos depois da publicação da Constituição conciliar, o latim é completamente suplantado pelas línguas nacionais nas celebrações litúrgicas.
1969 – 1974. Com a tradução integral da Liturgia das Horas, o breviário é “deslatinizado”.


DEMITIDO E AFASTADO
Por Andrea Tornielli

O padre Gottardo Pasqualetti, do Instituto das Missões da Consolata, trabalhou com dom Annibale Bugnini no Consilium, acompanhou-no ao “exílio” no Irã e o ajudou a escrever o livro sobre a reforma litúrgica, publicado póstumo em 1982. Padre Gottardo concordou em falar a 30Dias sobre alguns episódios da reforma litúrgica, em defesa da memória de dom Bugnini.

Por que motivo dom Bugnini não foi confirmado como secretário da comissão conciliar depois de ter ocupado esse cargo na comissão preparatória?
PASQUALETTI: Essa medida foi tomada pelo cardeal Arcádio Larraona, e foi determinada sobretudo pela questão do latim e pelo temor que o vernáculo fosse introduzido na celebração litúrgica. Larraona foi apoiado pelos mestres músicos do Vaticano. O padre Bugnini e dom Andrzej Deskur, que já trabalhava com as comunicações sociais, foram os únicos que perderam o lugar na passagem da fase de preparação ao início dos trabalhos do Concílio.

Passemos ao segundo “exílio”, com a nomeação como pró-núncio no Irã, em 1975. Nesse caso, foi uma verdadeira remoção, decidida por Paulo VI. O que a determinou?
PASQUALETTI: Foi um verdadeiro drama para Bugnini. A sua maior dor foi devida ao fato de ter sido removido sem que as razões do afastamento lhe fossem comunicadas. Até o Papa, que o recebeu em audiência, não disse nada sobre isso. Segundo Bugnini, a decisão foi determinada por uma autêntica conspiração, baseada em documentos falsos segundo os quais ele seria membro da maçonaria.

Não poderia ter sido um julgamento implícito sobre o modo de atuar na reforma litúrgica?
PASQUALETTI: De fato, houve isso também. Em 1974, a situação de Bugnini já era difícil, devido aos constantes conflitos com a Congregação para a Doutrina da Fé, na época dirigida pelo cardeal Seper. Pode parecer paradoxal, mas o relacionamento com a Congregação era melhor no tempo de Ottaviani. Em 1975, Bugnini foi afastado do Consilium, todos os sinais da sua passagem foram cancelados e destruído tudo o que ele construiu. Ainda hoje, quando alguém da Congregação para o Rito fala sobre a reforma litúrgica, evita citar o nome de Bugnini.

Foi dito muitas vezes que dom Bugnini exercia uma grande influência sobre Paulo VI, que tinha livre acesso ao seu escritório e podia apresentar-lhe diretamente qualquer documento. O cardeal Journet disse que no famoso caso do artigo 7 da definição da missa, Paulo VI teria assinado sem ler, tão grande era a confiança que depositava em Bugnini. É verdade?
PASQUALETTI: Sem dúvida, Bugnini exercia uma certa influência sobre Paulo VI, mas dizer que o papa assinava sem ler não é verdade. Bugnini apresentava muitos documentos a Paulo VI, tanto que alguns cardeais reclamaram porque o papa trabalhava excessivamente. Os documentos apresentavam todas as posições e todas as soluções possíveis. Pode ser que algo tenha escapado à atenção do Papa. Em todo caso, os dois trabalhavam juntos por muitas horas e reviam todos os textos.

A MISSA DEGENERADA EM SHOW
por Joseph Ratzinger

O ex prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé fala sobre a reforma litúrgica Um jovem sacerdote disse-me recentemente: “Hoje precisamos de um novo movimento litúrgico”. Era a expressão de um desejo que, nos nossos dias, só espíritos voluntariamente superficiais poderiam descartar. Para aquele sacerdote, o importante não era a conquista de liberdades novas e audaciosas: nós já não tomamos todas essas liberdades? Ele entendeu que nós precisamos de um novo começo, que nasça no íntimo da liturgia, como queria o movimento litúrgico quando estava no apogeu de sua verdadeira natureza e não se preocupava em fabricar textos, inventar gestos e formas, mas em redescobrir o centro vivo, penetrar no tecido propriamente dito da liturgia, para que a sua realização nascesse da substância da liturgia. A reforma litúrgica, na sua realização concreta, afastou-se dessa origem. O resultado não foi uma reanimação mas uma devastação. De um lado, temos uma liturgia que se degenerou em show, com a tentativa de fazer com que a religião seja interessante com a ajuda de tolices da moda e de máximas morais sedutoras, que fazem sucesso momentâneo no grupo de fabricantes litúrgicos, e leva a uma atitude de fechamento ainda mais pronunciada entre aqueles que procuram na liturgia não um show-master espiritual mas o encontro com o Deus vivo diante do qual o “fazer” se torna insignificante, porque só esse encontro é capaz de nos possibilitar o acesso às verdadeiras riquezas do ser.
Do outro lado, há a conservação das formas rituais cuja grandeza comove ainda hoje, mas que, levado ao extremo, manifesta um isolamento obstinado e no fim só produz tristeza. Certamente, existem entre esses extremos sacerdotes e paroquianos que celebram a nova liturgia com respeito e solenidade, mas eles são contestados pela contradição entre os dois extremos, e a falta de unidade interna na Igreja faz com que a sua fidelidade pareça, erradamente em muitos casos, como uma simples variação pessoal do neoconservadorismo. Em vista dessa situação, é necessário um novo impulso espiritual para que a liturgia seja novamente para nós uma atividade comunitária da Igreja e para que ela seja arrancada da arbitrariedade dos párocos e das suas equipes de liturgia.
Não podemos “fabricar” um movimento litúrgico desse tipo – como não podemos “fabricar” nada vivo – mas podemos contribuir para o seu desenvolvimento, esforçando-nos para assimilar novamente o espírito da liturgia e defendendo publicamente o que recebemos. Esse novo início precisa de “pais” que sejam modelos e não se contentem em indicar o caminho a seguir. Quem hoje procura esses “pais” encontrará sem dúvida a pessoa de monsenhor Klaus Gamber, que infelizmente nos deixou cedo demais, mas que pode ser, justamente pela sua partida, realmente presente com toda a força das perspectivas que nos abriu. Partindo, ele evita a querela dos partidos e pode, nesta hora de dificuldade, ser o “pai” em um novo começo. Gamber atuou de coração a esperança do antigo movimento litúrgico. Sem dúvida, visto que provinha de uma escola estrangeira, sempre foi um outsider no cenário alemão, onde não quisemos admiti-lo. Recentemente, um jovem pesquisador teve dificuldades na sua tese porque ousou citar Gamber abundantemente e com muita benevolência. Mas pode ser que esse ostracismo seja providencial, porque forçou Gamber a seguir o seu caminho e evitou o peso do conformismo.
È difícil dizer em poucas palavras aquilo que, na querela dos liturgistas, é realmente essencial e o que não é. Pode ser a indicação seguinte seja útil. J. A. Jungmann, um dos grandes liturgistas do nosso século, definiu a liturgia como a entendemos no Ocidente, sobretudo através das pesquisas históricas, como uma “liturgia fruto de um desenvolvimento”, provavelmente para contrastar a noção oriental que não vê na liturgia um devir e um crescimento histórico mas só o reflexo da liturgia eterna, na qual a luz, através da função sacra, ilumina o nosso tempo e o reveste com a sua beleza e grandeza imutáveis. As duas concepções são legítimas e não inconciliáveis. O que aconteceu depois do Concílio foi muito diferente: em lugar de uma liturgia fruto de um desenvolvimento contínuo, surgiu uma liturgia fabricada. Saímos do processo vivo de crescimento e de devir para entrar na fabricação. Não quisemos prosseguir o devir e o amadurecimento orgânico do que vive através dos séculos, e o substituímos – como na produção técnica – por uma fabricação, um produto banal do instante. Gamber, com a vigilância de um autêntico profeta e a coragem de um testemunha, opôs-se a essa falsificação e nos ensinou incansavelmente a plenitude viva de uma liturgia verdadeira, graças ao seu grande conhecimento. Como homem que conhecia e amava a história, ele nos mostrou as múltiplas formas do devir e do caminho da liturgia; como homem que via a história por dentro, ele viu nesse desenvolvimento o reflexo intocável da liturgia eterna, que não é objeto da nossa ação mas pode continuar maravilhosamente a amadurecer e a afirmar-se se nós nos unimos intimamente ao seu mistério. A morte desse homem e sacerdote eminente deve nos estimular; a sua obra pode nos ajudar a tomar novo impulso.
(Prefácio do livro La réforme liturgique em question, de Klaus Gamber, Editions Sainte-Madeleine)


TRADUZIDOS E TRAÍDOS
(por Lorenzo Bianchi)

Interpretar, suprimir e adequar: foram esses os princípios que os liturgistas seguiram.
Distorcendo tudo.
Traduzidos ou traídos?

O desaparecimento repentino do latim e a conseqüente utilização do vernáculo nos livros litúrgicos teve graves conseqüências. Apresentamos a seguir alguns trechos dos documentos que a partir do Concílio ditaram as regras a serem seguidas na tradução.
A Instrução Inter Oecumenicis, da Sagrada Congregação para os Ritos (26 de setembro de 1964) estabeleceu a necessidade de uma “tradução perfeita”. Quase três anos depois, uma carta circular do Consilium aos presidentes das Conferências Episcopais (21 de junho de 1967), assinada pelo cardeal Giacomo Lercaro, acrescentou os seguintes elementos: “Deve ser preparada uma tradução nova, bem cuidada e digna. Além disso, a tradução deve ser literal e integral (em itálico no original, nda). Os textos devem ser tomados como são, sem mutilações ou simplificações de nenhum tipo”. Todavia a carta dizia também: “Não é oportuno queimar etapas. Quando chegar o momento de novas criações, não será mais necessário submeter-se à estreiteza da tradução literal”. Naquela época, o filósofo Jacques Maritain, escreveu a Paulo VI: “Na verdade, o primeiro dever de um tradutor que não queira ser um traidor é respeitar sempre a palavra que foi usada pelo autor (que ele, ou o Espírito Santo que o inspirou, teve razões para escolher em lugar de outra) e procurar um equivalente exato, mesmo ao preço da obscuridade. Obscuridade inevitável, obscuridade bendita, porque é a sombra que a grandeza das coisas divinas lança sobre a nossa linguagem humana”. Todavia, como vimos, já em 1967 a “tradução literal” era algo que os responsáveis pela atuação da reforma litúrgica a consideravam superável no futuro. Pouco antes da publicação do novo Missal Romano reformado, no início de 1969, foi promulgado um longo documento oficial: a Instrução do Consilium sobre a tradução dos textos litúrgicos, intitulada Comme le prévoit (25 de janeiro de 1969). O texto, muito detalhado e aparentemente esclarecedor, dava espaço a interpretações incrivelmente discordantes: de um lado, destacava a necessidade de uma fidelidade total ao texto latino, e do outro introduzia um conceito paralelo de “tradução livre”. O número 34, por exemplo, diz: “As ‘orações’ do antigo patrimônio romano, muito concisas e cheias de idéias, poderão ser traduzidas com mais liberdade; sejam conservadas as idéias, ampliando com moderação – se necessário – a formulação, para melhor ‘atualizar’ o seu conteúdo à celebração e às exigências de hoje”. Além disso, encontram-se em outras partes do texto algumas afirmações que abrem caminho para o arbítrio interpretativo: “Em alguns casos, é difícil entender a concepção das realidades expressas, seja porque é um choque para o senso cristão atual (por exemplo, ‘terrena despicere’ ou ‘ut inimicos sanctae Ecclesiae humiliaris digneris’) seja porque não toca mais o coração dos contemporâneos (por exemplo, algumas expressões antiarianistas), seja porque não se presta à oração atual (por exemplo, certas alusões a formas penitenciais em desuso). Nesses casos, não basta suprimir o que não serve: é necessário encontrar a forma de exprimir em linguagem atual as realidades evangélicas equivalentes”(nº 24c). É uma inversão total das considerações de Maritain! É, portanto compreensível a preocupação de Paulo VI - cujo pedido de publicar o texto latino ao lado ou pelo menos em apêndice no missal não foi atendido por supostos “motivos técnicos” – que, no discurso aos participantes do Congresso organizado pela Comissão de Liturgia Italiana (17 de fevereiro de 1969), disse: “Trabalhar bem quer dizer elaborar perfeitamente (em itálico no original, nda) – as traduções dos textos litúrgicos, principalmente agora que nos adentramos no recinto augusto, austero, sacro, venerável e tremendo das Orações Eucarísticas, que antigamente a ‘Disciplina do Arcano’ quis proteger durante longo tempo da indiscrição e da profanação, e que por isso merecem toda a sensível atenção da piedade, da doutrina e da expressão em vernáculo.
Nesse aspecto, será oportuno proceder com paciência, sem pressa e sobretudo com humildade, pedindo a colaboração de muitos, não só dos teólogos e liturgistas mas também de literatos e revisores de estilo, para que as traduções sejam documentos de reconhecida beleza, que possam desafiar a usura impiedosa do tempo com a propriedade, a harmonia, a elegância e a riqueza da expressão e da língua, em plena correspondência com a riqueza interior do conteúdo”. Naquele mesmo ano foi publicada a primeira tradução “típica” e oficial em língua italiana, limitada ao Rito da missa.
A terceira Instrução da Congregação para os Ritos para a aplicação exata da Constituição sobre Sagrada Liturgia, Liturgicae Instarationes (5 de setembro de 1970), não fala mais da tradução “literal” pedida três anos antes: “A compreensão da reforma litúrgica exige que seja feita um grande esforço para uma digna tradução em vernáculo e a publicação dos livros litúrgicos renovados(...) Nesse aspecto, será oportuno proceder sem pressa e sobretudo com humildade, pedindo a colaboração de várias pessoas, não só os teólogos e liturgistas mas também de literatos e revisores de estilo, para que as traduções sejam documentos de reconhecida beleza, possam desafiar a usura do tempo com a propriedade, a harmonia, a elegância e a riqueza da expressão e da língua, em plena correspondência com a riqueza interior do conteúdo” (nº 11 – note-se que curiosamente Bugnini reproduz a frase de Paulo VI acima citada, suprimindo a menção à humildade que o Papa pedia aos tradutores). Portanto, a tradução, especialmente nas “orações”, como previsto nas normas publicadas em 1969, poderá afastar-se da letra do texto latino.
Foi o que aconteceu com o missal italiano: menos de dois meses depois, ficou pronta a tradução completa “ad interim”, aprovada pela Conferência Episcopal Italiana, na qual é possível notar essa tendência, que se acentuou nas edições típicas oficiais de 1973 e 1983. Em, 1973, a Congregação para o Culto Divino enviou aos presidentes das Conferências Episcopais uma carta circular sobre as traduções das fórmulas sacramentais (Dum toto terrarum, 25 de outubro), na qual dá a entender que estas também podem ser interpretadas e cita explicitamente o caso de diferenças em relação ao texto latino: “Se as fórmulas que se referem à essência dos sacramentos não são traduzidas literalmente, é necessário apresentar as razões pelas quais foram feitas mudanças em relação ao texto latino”.
Diante das várias interpretações dos textos, foi necessária uma declaração da Congregação para a Doutrina da Fé (Instauratio liturgica, de 25 de janeiro de 1974, assinada pelo prefeito, cardeal Franjo Seper, e pelo secretário, monsenhor Jean Jerôme Hamer que dizia: “A Sé Apostólica (...) aprova e confirma (as versões em vernáculo das fórmulas sacramentais) e estabelece ao mesmo tempo que o seu significado é, na mente da Igreja, o significado expresso pelo texto original latino”. Assim, pelo menos o essencial era preservado.