Tudo na Liturgia quer, em último sentido, dar glória a Deus, adorar-lhe e refletir o Seu Mistério. É por isso que a Missa sempre foi dita “o Céu na terra”, porque refletia aos homens desta terra o Mistério da vida vindoura. É por isso também que, durante a Consagração das Espécies o sacerdote pronuncia solenemente as palavras: Mysterium Fidei! A Missa, o Sacrifício de Cristo atemporal e eterno, oferecido uma vez por todas no Calvário e renovado no Altar, é um mistério da Fé, mysterium fidei. O estranho, contudo, é que o sacerdote precise indicar em alto e bom som na forma nova do Rito Romano que aquilo se trata de mysterium fidei, mistério da fé. Na forma tradicional do Rito Romano, segundo o Missal de 1962, o sacerdote não dizia em voz alta, mas aos sussurros, que era mistério da fé a transubstanciação do Pão e Vinho em Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por que hoje é preciso dizê-lo explicitamente na Missa, em voz alta, para todos ouvirem e entenderem?
Por que a própria Reforma Litúrgica de 1970 foi conduzida sob influência clara do racionalismo. Mons. Bugnini e vários elementos do Concilium, a Comissão que reformou a Liturgia, estavam imbuídos da noção moderna de que a razão humana deve entender tudo e de que o que não passa pelo crivo da razão deve ser rejeitado. Assim, pois, na mente destes que reformaram a Liturgia para que o homem moderno, racionalista, entendesse que a Santa Missa era efetivamente mistério da Fé, ela deveria ser dita como tal, indicada como tal. Daí que seja preciso o sacerdote dizer em alto e bom som “Mysterium fidei” após a Consagração. Isto não acontecia na forma tradicional do Rito Romano, dado que à época em que foi colimado definitivamente ainda perdurava a noção tomista da Razão, que não a encarava como onipotente para a compreensão de tudo, onisciente, coisa que só veio a surgir na Modernidade, com o Iluminismo.
O homem moderno parece ter uma necessidade de entender tudo, de saber de tudo. O homem moderno acha-se tão superior que não admite mistérios, não admite símbolos, não admite segredos. Hoje, efetivamente, como aos pagãos, poder-se-ia falar na “loucura da Cruz” (I Coríntios 1,18) porque, para o homem racionalista moderno, um mistério tão grandioso como a Salvação dos homens na Cruz por Cristo, como a Transubstanciação na Missa, um Deus assim tão inefável e transcendente, que não cabe na mente humana, seria uma loucura. E, infelizmente, esta mentalidade racionalista penetrou também na Reforma Litúrgica por meio daqueles que a conduziram, fazendo com que seja preciso dizer ao homem moderno que a Missa é Mysterium Fidei para que ele possa entendê-la como tal. E assim a Missa, na cabeça de muitos, deixou de ser Mysterium Fidei e passou a ser Mysterium rationis, mistério da razão; isso causa conseqüências nefastas: seria preciso adaptar a Liturgia À melhor maneira de o homem entendê-la, pois ela é um mistério de sua razão; o homem é posto no centro, e Deus daí é retirado; o antropocentrismo penetra, e com ele os abusos. E teria sido pior, se não fossem os freios impostos pelo Papa Paulo VI, ele próprio cercado de todos os lados e debilitado, e as reformas de João Paulo II. Reflexos do racionalismo na Reforma Litúrgica são visíveis. Na forma tradicional do Rito Romano, todo o Ofertório e o Cânon eram rezados em voz baixa, de forma que só o sacerdote o pudesse ouvir, mas não o povo. O sentido é de que esta Oração santíssima deveria ser envolvida em mistério, preservado do barulho mundano, resguardado pelo sacerdote num manto de silêncio sagrado, como era resguardada por um véu a Arca da Aliança no Templo. No Oriente ainda há Ritos cuja Consagração é celebrada em completo mistério no interior de um presbitério, sem que o povo possa vê-lo ou ouvi-lo. Hoje em dia há quem se escandalize em saber que na Missa Tradicional o povo não ouve o Cânon. E, de fato, com a Reforma Litúrgica o Ofertório e o Cânon passaram a ser rezados em alto e bom som, para que todos pudessem ouvi-lo (no Brasil, por invenção da CNBB, o Cânon ainda é interrompido por resposta intrusas do povo, como se os fiéis precisassem intervir para que o Sacrifício seja válido!). Por que esta necessidade de que o homem escute tudo? Por que esta necessidade de que o homem saiba por seus sentidos de tudo que se passa? É o racionalismo que penetrou na Missa; o homem agora não se contenta com o Mistério, precisa ouvir tudo, saber de tudo; sua razão orgulhosa não permite que ele não saiba de tudo. Infelizmente, o racionalismo penetrou na Reforma neste ponto.
O silêncio e o Mistério aí precisam ser recuperados. Este é um dos grandes diferenciais da Missa Tradicional em relação à Missa Nova: o silêncio sagrado põe o homem num clima de abertura a Deus, num clima de mistério perante um Deus que é um Mistério. Mas não só isso. A rejeição do latim por muitos fiéis, sacerdotes e Bispos é também reflexo da penetração do racionalismo. O latim que possui profundo sentido teológico: além de ser a conexão com as inúmeras gerações passadas da Igreja, preserva melhor o sentido dos textos, protege-os das evoluções das línguas vernáculos e, assim, das corruptelas de doutrina, além de ser a língua da Igreja de Roma, o que demonstra perfeitamente a comunhão com esta Igreja, “com a qual todas as outras Igrejas devem se conformar”, segundo Santo Irineu. O Papa Beato João XXIII, na Constituição Apostólica Veterum Sapientia, dá inúmeras razões para que o latim permaneça como a língua da Liturgia. Paulo VI lamentou sua perda diversas vezes. João Paulo II quis recuperá-lo. Bento XVI permanece na luta pelo seu resgate. O latim, por não ser uma língua do cotidiano, expressa muito bem o Mistério de Deus: inefável e incompreensível em sua Majestade, a Deus a Igreja não se dirige como se dirige ao povo, na sua língua pátria; a Igreja se dirige a Deus por uma língua própria para Ele, uma língua solene, uma língua que a razão humana tem dificuldade de entender, como tem dificuldade de entender a Deus. Por isso mesmo o latim cria um ambiente de solenidade, de transcendência, de sagrado, de Mistério. Mysterium Fidei.
Mas rejeita-se o latim, apesar de seu profundo sentido. A justificativa para essa rejeição injustificável? É comumente dito que “o povo não entende”. Esta justificativa é denúncia máxima da penetração do racionalismo na Liturgia. Por que o povo precisa entender tudo na Missa e não apenas o essencial – como de Deus não entendemos tudo, mas só o essencial, que Ele mesmo nos revelou? Por que é preciso que o povo saiba o que se diz a cada ato? Por que é necessário que o povo escute claramente cada palavra, que a razão humana entenda todo o texto, em seus mínimos detalhes? Porque, para o homem moderno, nada tem razão de ser se não passa pela sua razão; o homem moderno tem que entender tudo, sua ambição é pela onisciência. E, infelizmente, isto penetrou na Liturgia por meio da Reforma Litúrgica que, em sua condução, cedeu ao racionalismo moderno: o católico moderno precisaria ouvir e entender toda palavra na Liturgia para que ela tenha algum sentido e por isso a Liturgia tem de ser na língua do povo; e, assim, não se nota que o sentido máximo da Liturgia não está dentro da mente humana, que a Liturgia tem seu sentido maior justamente fora da mente humana, em Deus, que é Mistério. A Reforma da Reforma, que quer o Papa Bento XVI, só poderá caminhar se pudermos reconhecer com coragem que a Reforma Litúrgica, como foi conduzida por Mons. Bugnini e a Concilium, teve sérios problemas. Um destes problemas é este que apresentamos neste artigo, o racionalismo. Outro, amplamente falado, é o do arqueologismo litúrgico. E houve outros mais. Reconhecer corajosamente estes defeitos da Reforma Litúrgica e o que precisa ser melhorado na Nova Missa é essencial para uma Reforma da Reforma, como quer o Papa, uma reforma que leve à cabo uma renovação da Liturgia em continuidade com todo o patrimônio da Igreja, como desejou realmente o Concílio Vaticano II. Para resolver o problema do racionalismo, um dos primeiros e mais imediatos passos é a restauração do latim na celebração a Missa Nova e sua preferência em relação às línguas vernáculas.
Não só isso é preciso resgatar o silêncio sagrado, com a escolha de cantos mais serenos e condizentes com o espírito da Liturgia; o próprio Ofertório e o Cânon, se devem ser ditos em voz alta, podem ser pronunciados num tom mais baixo do que normalmente é feito ou até sem o uso do microfone, para que se relembre aquele silêncio sagrado e como a Missa é, realmente, Mistério. Mas nada disso adiantará se não for feita uma reforma das convicções do homem moderno. É preciso que o católico moderno não caia na tentação de idolatrar-se ou idolatrar sua razão, como tristemente faz a Modernidade, em seu infeliz racionalismo. É preciso reconhecer nossa pequenez diante de Deus, a pequenez de nossa razão perante o Seu Mistério. Em suma, é preciso ter humildade. Ir à Missa com humildade e reconhecer-se pequeno, indigno. Essa é uma atitude de todo necessária para consertar este grave problema do racionalismo na Liturgia, que tantas más e graves conseqüências vêm provocando. A Liturgia não é mysterium rationis ou mysterium populi: ela é Mysterium Fidei, expressão do Mysterium Dei.