terça-feira, 9 de novembro de 2010

O Racionalismo na Liturgia: Mysterium rationis?

Conta-se que Santo Agostinho de Hipona, plenamente envolvido na reflexão sobre o mistério da Santíssima Trindade, quase enlouqueceu em sua tentativa entender a Deus. Certo dia, cansado de pensar, foi caminhar à beira-mar; encontrando um menino que punha água num buraco por ele cavado, perguntou-lhe porque fazia isso. “Vou pôr o mar neste buraco”, respondeu o garoto. “Impossível”, replicou Agostinho, com piedade da pequena inocência. Ao que disse-lhe o menino, na verdade um anjo: “É mais fácil eu pôr o mar dentro deste buraco do que você compreender o mistério que quer compreender”. A cena foi retratada pelo Mestre Dughet num belo quadro. Deus é um mistério. Podemos chegar ao conhecimento da existência de Deus e de alguns de seus atributos por meio da luz da razão natural (Conc. Ecum. Vaticano I, DS 3004), mas nunca poderemos esgotar-Lhe o mistério. A criatura não pode absorver o Criador, porque não é maior do que ele, da mesma maneira como a parte não pode ser maior do que o todo – apenas uma analogia, pois, evidentemente, o homem não é parte de Deus, o que seria Acir no panteísmo. Deus é “inefável, incompreensível, invisível, inatingível”, reza a Anáfora da Liturgia de S. João Crisóstomo. A razão humana “atinge, realmente o próprio Deus, ainda que sem poder exprimi-Lo em sua infinita simplicidade” (Catecismo da Igreja Católica, n.43), “nossas palavras humanas permanecem sempre aquém do Mistério de Deus” (id. n.42). Deus, pois, não pode ser colocado de inteiro na cabeça do homem; o homem não é maior do que Deus para absorvê-Lo por completo. Como Agostinho, nem podemos pôr o mar num buraco cavado na terra, nem podemos pôr Deus em nossa razão. Entender completamente a Deus é uma ambição orgulhosa da razão humana que nunca poderá ser satisfeita, pois Deus é maior que tudo, será sempre mysterium. Como dizia o Apóstolo, “a nossa ciência é parcial, nossa profecia é imperfeita”, “vemos como por um espelho, confusamente” (I Coríntios 13,9.12). A Santa Missa é, primeiramente e antes de qualquer coisa, sacrifício latrêutico, isto é, de adoração a Deus (Catecismo Menor de S. Pio X, n.657). Como tal, a Liturgia reflete em si o Mistério de Deus: sua beleza, seus símbolos, o incenso, o latim, os movimentos, os paramentos do sacerdote...

Tudo na Liturgia quer, em último sentido, dar glória a Deus, adorar-lhe e refletir o Seu Mistério. É por isso que a Missa sempre foi dita “o Céu na terra”, porque refletia aos homens desta terra o Mistério da vida vindoura. É por isso também que, durante a Consagração das Espécies o sacerdote pronuncia solenemente as palavras: Mysterium Fidei! A Missa, o Sacrifício de Cristo atemporal e eterno, oferecido uma vez por todas no Calvário e renovado no Altar, é um mistério da Fé, mysterium fidei. O estranho, contudo, é que o sacerdote precise indicar em alto e bom som na forma nova do Rito Romano que aquilo se trata de mysterium fidei, mistério da fé. Na forma tradicional do Rito Romano, segundo o Missal de 1962, o sacerdote não dizia em voz alta, mas aos sussurros, que era mistério da fé a transubstanciação do Pão e Vinho em Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por que hoje é preciso dizê-lo explicitamente na Missa, em voz alta, para todos ouvirem e entenderem?
Por que a própria Reforma Litúrgica de 1970 foi conduzida sob influência clara do racionalismo. Mons. Bugnini e vários elementos do Concilium, a Comissão que reformou a Liturgia, estavam imbuídos da noção moderna de que a razão humana deve entender tudo e de que o que não passa pelo crivo da razão deve ser rejeitado. Assim, pois, na mente destes que reformaram a Liturgia para que o homem moderno, racionalista, entendesse que a Santa Missa era efetivamente mistério da Fé, ela deveria ser dita como tal, indicada como tal. Daí que seja preciso o sacerdote dizer em alto e bom som “Mysterium fidei” após a Consagração. Isto não acontecia na forma tradicional do Rito Romano, dado que à época em que foi colimado definitivamente ainda perdurava a noção tomista da Razão, que não a encarava como onipotente para a compreensão de tudo, onisciente, coisa que só veio a surgir na Modernidade, com o Iluminismo.
O homem moderno parece ter uma necessidade de entender tudo, de saber de tudo. O homem moderno acha-se tão superior que não admite mistérios, não admite símbolos, não admite segredos. Hoje, efetivamente, como aos pagãos, poder-se-ia falar na “loucura da Cruz” (I Coríntios 1,18) porque, para o homem racionalista moderno, um mistério tão grandioso como a Salvação dos homens na Cruz por Cristo, como a Transubstanciação na Missa, um Deus assim tão inefável e transcendente, que não cabe na mente humana, seria uma loucura. E, infelizmente, esta mentalidade racionalista penetrou também na Reforma Litúrgica por meio daqueles que a conduziram, fazendo com que seja preciso dizer ao homem moderno que a Missa é Mysterium Fidei para que ele possa entendê-la como tal. E assim a Missa, na cabeça de muitos, deixou de ser Mysterium Fidei e passou a ser Mysterium rationis, mistério da razão; isso causa conseqüências nefastas: seria preciso adaptar a Liturgia À melhor maneira de o homem entendê-la, pois ela é um mistério de sua razão; o homem é posto no centro, e Deus daí é retirado; o antropocentrismo penetra, e com ele os abusos. E teria sido pior, se não fossem os freios impostos pelo Papa Paulo VI, ele próprio cercado de todos os lados e debilitado, e as reformas de João Paulo II. Reflexos do racionalismo na Reforma Litúrgica são visíveis. Na forma tradicional do Rito Romano, todo o Ofertório e o Cânon eram rezados em voz baixa, de forma que só o sacerdote o pudesse ouvir, mas não o povo. O sentido é de que esta Oração santíssima deveria ser envolvida em mistério, preservado do barulho mundano, resguardado pelo sacerdote num manto de silêncio sagrado, como era resguardada por um véu a Arca da Aliança no Templo. No Oriente ainda há Ritos cuja Consagração é celebrada em completo mistério no interior de um presbitério, sem que o povo possa vê-lo ou ouvi-lo. Hoje em dia há quem se escandalize em saber que na Missa Tradicional o povo não ouve o Cânon. E, de fato, com a Reforma Litúrgica o Ofertório e o Cânon passaram a ser rezados em alto e bom som, para que todos pudessem ouvi-lo (no Brasil, por invenção da CNBB, o Cânon ainda é interrompido por resposta intrusas do povo, como se os fiéis precisassem intervir para que o Sacrifício seja válido!). Por que esta necessidade de que o homem escute tudo? Por que esta necessidade de que o homem saiba por seus sentidos de tudo que se passa? É o racionalismo que penetrou na Missa; o homem agora não se contenta com o Mistério, precisa ouvir tudo, saber de tudo; sua razão orgulhosa não permite que ele não saiba de tudo. Infelizmente, o racionalismo penetrou na Reforma neste ponto.

O silêncio e o Mistério aí precisam ser recuperados. Este é um dos grandes diferenciais da Missa Tradicional em relação à Missa Nova: o silêncio sagrado põe o homem num clima de abertura a Deus, num clima de mistério perante um Deus que é um Mistério. Mas não só isso. A rejeição do latim por muitos fiéis, sacerdotes e Bispos é também reflexo da penetração do racionalismo. O latim que possui profundo sentido teológico: além de ser a conexão com as inúmeras gerações passadas da Igreja, preserva melhor o sentido dos textos, protege-os das evoluções das línguas vernáculos e, assim, das corruptelas de doutrina, além de ser a língua da Igreja de Roma, o que demonstra perfeitamente a comunhão com esta Igreja, “com a qual todas as outras Igrejas devem se conformar”, segundo Santo Irineu. O Papa Beato João XXIII, na Constituição Apostólica Veterum Sapientia, dá inúmeras razões para que o latim permaneça como a língua da Liturgia. Paulo VI lamentou sua perda diversas vezes. João Paulo II quis recuperá-lo. Bento XVI permanece na luta pelo seu resgate. O latim, por não ser uma língua do cotidiano, expressa muito bem o Mistério de Deus: inefável e incompreensível em sua Majestade, a Deus a Igreja não se dirige como se dirige ao povo, na sua língua pátria; a Igreja se dirige a Deus por uma língua própria para Ele, uma língua solene, uma língua que a razão humana tem dificuldade de entender, como tem dificuldade de entender a Deus. Por isso mesmo o latim cria um ambiente de solenidade, de transcendência, de sagrado, de Mistério. Mysterium Fidei.
Mas rejeita-se o latim, apesar de seu profundo sentido. A justificativa para essa rejeição injustificável? É comumente dito que “o povo não entende”. Esta justificativa é denúncia máxima da penetração do racionalismo na Liturgia. Por que o povo precisa entender tudo na Missa e não apenas o essencial – como de Deus não entendemos tudo, mas só o essencial, que Ele mesmo nos revelou? Por que é preciso que o povo saiba o que se diz a cada ato? Por que é necessário que o povo escute claramente cada palavra, que a razão humana entenda todo o texto, em seus mínimos detalhes? Porque, para o homem moderno, nada tem razão de ser se não passa pela sua razão; o homem moderno tem que entender tudo, sua ambição é pela onisciência. E, infelizmente, isto penetrou na Liturgia por meio da Reforma Litúrgica que, em sua condução, cedeu ao racionalismo moderno:
o católico moderno precisaria ouvir e entender toda palavra na Liturgia para que ela tenha algum sentido e por isso a Liturgia tem de ser na língua do povo; e, assim, não se nota que o sentido máximo da Liturgia não está dentro da mente humana, que a Liturgia tem seu sentido maior justamente fora da mente humana, em Deus, que é Mistério. A Reforma da Reforma, que quer o Papa Bento XVI, só poderá caminhar se pudermos reconhecer com coragem que a Reforma Litúrgica, como foi conduzida por Mons. Bugnini e a Concilium, teve sérios problemas. Um destes problemas é este que apresentamos neste artigo, o racionalismo. Outro, amplamente falado, é o do arqueologismo litúrgico. E houve outros mais. Reconhecer corajosamente estes defeitos da Reforma Litúrgica e o que precisa ser melhorado na Nova Missa é essencial para uma Reforma da Reforma, como quer o Papa, uma reforma que leve à cabo uma renovação da Liturgia em continuidade com todo o patrimônio da Igreja, como desejou realmente o Concílio Vaticano II. Para resolver o problema do racionalismo, um dos primeiros e mais imediatos passos é a restauração do latim na celebração a Missa Nova e sua preferência em relação às línguas vernáculas.
Não só isso é preciso resgatar o silêncio sagrado, com a escolha de cantos mais serenos e condizentes com o espírito da Liturgia; o próprio Ofertório e o Cânon, se devem ser ditos em voz alta, podem ser pronunciados num tom mais baixo do que normalmente é feito ou até sem o uso do microfone, para que se relembre aquele silêncio sagrado e como a Missa é, realmente, Mistério. Mas nada disso adiantará se não for feita uma reforma das convicções do homem moderno. É preciso que o católico moderno não caia na tentação de idolatrar-se ou idolatrar sua razão, como tristemente faz a Modernidade, em seu infeliz racionalismo. É preciso reconhecer nossa pequenez diante de Deus, a pequenez de nossa razão perante o Seu Mistério. Em suma, é preciso ter humildade. Ir à Missa com humildade e reconhecer-se pequeno, indigno. Essa é uma atitude de todo necessária para consertar este grave problema do racionalismo na Liturgia, que tantas más e graves conseqüências vêm provocando. A Liturgia não é mysterium rationis ou mysterium populi: ela é Mysterium Fidei, expressão do Mysterium Dei.